segunda-feira, 15 de outubro de 2012

NON DUCOR DUCO






Enquanto as pás dos extensos remos tocam a água salgada do mar Sílico, a turba braçal de turistas-escravos grita em uníssono o seu lema de vida. Compassados por um tambor tocado por Grande Morsa, rosnam em cadência:
TUM

"CRUZADA FERINA"

TUM

"TRAÇAMOS A TRILHA"

TUM

TUM

TUM


"SOMOS A FORÇA"

TUM

"EM BUSCA DE VIDA"

TUM

TUM

TUM

Grande Morsa solta o seu bastão no chão e entorna dois galões de água por cima da cabeça. O sol aquece a madeira naval e as costas de quarenta homens. A cantoria cessa com o intervalo do som. Coxa Dourada, a guia da galera trireme, estala seu chicote no ar enquanto bronzeia o corpo semi nu no teto da cabine de comando. Os gêmeos, Palafitas e Pauapique, urram ao retesar os músculos no desdobramento da lona das duas velas. Em cada fileira de remo, três homens empunham a tora de cinco centímetros de diâmetro e quatro metros de comprimento. A velocidade da galera é uma constante de oito nós, fato que incomoda o capitão Varonil Feudal, o cinqüentenário ouriço. Pensa ele, por cima de seu caderno de notas, que o aumento de meio metro nos remos será o suficiente para até doze nós singrando àquelas águas escuras.

- Em seu lado esquerdo observem a nona bomba atômica presa aos rochedos de Fernando de Noronha. Em 2026, esta foi a última tentativa de explosão do hemisfério sul. Apreciem a grande e colorida formação de corais que nela trabalharam sua morada ao longo de centenas de anos. Agora, remem!

Coxa Dourada estala o chicote na popa, o Grande Morsa retorna ao seu tambor. Na parte limítrofe da proa, entre o sagrado entalhe do deus Gogol e o primeiro remo, Jonas Jantar, Jesus João Maria e José Jocasta tratam de entrar em um acordo em seus movimentos braçais.

- Jesus, não deixe escapar a ponta do remo. Quer nos matar?

- Os grilhões em meus pés. Olhem!

Jonas abaixa sua cabeça, colada ao ombro de José, e observa a mancha preta e pútrida na canela de Jesus. Trata de cuspir no grilhão e retorna a sua posição.

- Talvez sua viagem termine em breve, Jesus. Não vou mentir minhas impressões.

- Não consigo ver meus próprios pés, mas sinto-os formigando e queimando. Estão feios?

José respira profundo entre os dois companheiros e acelera o centro do remo, levando os amigos a o acompanharem.

- Você, Jonas e você Jesus, devem seguir o tambor. Esqueçam os seus corpos. Logo estaremos podres e prontos para o grande oceano.

Jonas morde o lábio inferior. Observa, com olhos irritados pela espuma do mar, Coxa Dourada sentar firme sobre uma grande bola de aço presa na metade da galera.

- Estou assustado. Assustado com nosso destino.

...

Cinco meses voam em uma lenta brisa, cozinhando os homens. No dia de hoje, suas carnes recebem uma severa chuva de granizo. As velas são dobradas, o tambor é castigado. Capitão Varonil Feudal e Coxa Dourada dispõem sobre o tablado de veludo da cabine de comando, cartas do tarô de Marselha, despreocupados com seus comandados.

- Estamos todos a sangrar.

- O castigo destes cristais de água.

- Paciência.

- No horizonte o dia floresce.

- Concentrem.

De popa à proa, os escravos-turistas opinam sobre suas dores. O granizo corta suas peles enfraquecidas e bronzeadas; os filetes de sangue esvaem até a madeira intumescida por suor, sal e água.

- Por que reclamam?

- O que lhe incomoda reclamarem, José?

- São tão geladas as pedras destes pequenos granizos. Deveríamos abençoar o frescor oportuno.

- Somente sinto dor e mais dor, seu desgraçado egoísta.

- Não se desgastem em tão infrutífera rusga. Eu sinto dor e frescor. Ao primeiro, estamos acostumados, ao segundo, devemos estar agradecidos. É como tem que ser.

- Agradecidos, sim, Jonas. Mas jamais satisfeitos.

- Perdão, José. Estou à beira da loucura. Já não sinto a presença de meus pés. 

Jesus João Maria chora abertamente, com uma rouca respiração entrecortada por soluços. Abre os olhos vermelhos para o alto e fixa-os na nuvem mais densa e negra. Despenca um granizo pontiagudo que lhe vaza o olho esquerdo. Os companheiros prendem o fôlego e soltam o remo, observando sem palavras o silêncio do caolho.

- Não sente a dor, Jesus?

- Metade do mundo acabou de fechar sua cortina. Pra quê sentir dor?

O chicote de Coxa Dourada corta o ar com um som diferente, úmido. A ferina ponta de metal decepa metade da orelha de José. Jonas encara a carrancuda mulher de feições masculinas, aprisionada em um corpo torneado, feminino; até baixar os olhos e ver a cartilagem da orelha escorregar por sua barriga. José grita de dor ao mesmo tempo em que leva as mãos ao remo e dá inicio aos movimentos circulares. Jonas fala baixo, mas suficiente para sobrepor o pipocar da chuva:

- Não há nada que você possa fazer José. Suporte e pense no futuro.

Os três entram novamente na tarefa rotineira. A chuva engorda as gotas e interrompe o gelo. Um raio abre um arco de luz no mar e ilumina o casco escuro da galera trireme.

- Nunca mais larguem o remo, bestas de Júpiter. – Brada com a língua de fora, Coxa Dourada.

Surge uma ventania do sul que até então não se fazia presente. A embarcação range e deriva de um lado ao outro como um pendulo lento. Nos esforços desesperados da tripulação os remos são como penas frágeis, perdidas nas ondas. Coxa Dourada se desequilibra e torce os pés num pisar torpe, esbarrando nos cansados escravos. Com pânico na alma, clama por socorro em direção ao obeso Grande Morsa.

Este, limita-se a sorrir seus poucos dentes em desprezo para a bruta mulher. Uma lufada maior de vento, carregado de assombro pela trovoada, derruba um bloco de gelo grande o suficiente para esmagar o dorso de Coxa Dourada no chão. Sua cabeça escorrega até os pés do entalhe do deus Gogol. Os escravos-turistas contemplam com satisfação a justiça da natureza, ao separar a beleza escultural do corpo, daquela cabeça mastodôntica, ossuda e mal concebida. Palafitas e Pauapique engatinham como caranguejos até as partes do corpo. Arrastam para o porão a massa disforme. As pernas, intactas, são acariciadas e recolhidas. Capitão Varonil retém a cabeça com a sola porosa de sua botina. Os irmãos viram o rosto e encaram temerários o gigante negro.

- Sopa.

- Será sopa então, capitão.

Na bonança que segue, após a atribulada tempestade, surgem dezenas de gaivotas carregando pequenos filhotes de rato em suas asas. Lourival Maestro suspira ao reconhecer a ilha que seus pais tanto haviam falado a respeito.

- Rio de Janeiro. Eis adiante, patetas.

Jonas rosna mal humorado. Evita olhar o pequeno pedaço de terra que brota quase sufocado pelas águas. A cabeça de pedra de um ídolo partido, presa por um emaranhado de corais e algas.

- Onde estamos indo, afinal?

- Nos alistamos para um período incerto de escravidão.

- Que a alta cúpula de Maputo inda nomeia como turismo-escravo. Turismo! Creia numa dessa.

- Cremos.

Jonas olha para trás e diz a Lourival:

- Sim, somos todos patetas.

O capitão Varonil Feudal atravessa o corredor e sobe um degrau na ponta da proa, ao lado do deus Gogol. 

- Nosso destino se aproxima. Encontraremos abrigo e suprimento nestas terras desoladas. Expandiremos nosso povo que nos aguarda nas longínquas terras. Assim indicam os sábios do grande livro. Duas horas de pernas esticadas, fiquem de pé.

Grande Morsa, em todos os descansos oferecidos pelo capitão, toma o lugar antes incumbido a Coxa Dourada. Distribui água potável, colhida nas chuvas e pedaços de peixe, secos em sal grosso. Famélicos, os homens devoram as partes no mais precioso e único manjar.

Após dois meses de avanço, esta é a mais estrelada das noites. Jonas não consegue dormir, apesar da fadiga que faz tremer todo seu corpo. Lourival Maestro, posicionado na mesma linha de que Jonas, exatamente atrás, na parte que empareda o mar Silico, assovia uma melodia fúnebre.

- Se, como eu, não consegue dormir, pare com a tristeza de seus lábios. Poupe-me.

Lourival encosta os lábios próximos a nuca de Jonas.

- Tenho observado a dinâmica de todos. Durante todos estes meses. Segui com o olhar, cada passo, ouvi cada murmúrio. Decifrei todos os códigos.

- Do quê está falando?

- Partimos fazem onze meses de nossa terra abençoada, superlotada, esturricada. Desde então fizemos o percurso que muitos amigos e familiares percorreram a cada quatro anos. Visto como grande sucesso, pois apenas o capitão retornava com suas noticias prodigiosas do grande paraíso chamado Brasil e sempre com uma nova embarcação. Nunca retornou com esta galera que tocamos à frente. Sabe por quê?

Jonas relaxa a cabeça para trás, envolto na conversa do outro.

- Diga lá, vamos.

- Bom, meu caro, somos sacrifícios. Do modo mais irônico possível. Nossos lideres em terra natal são temerários em relação a nações distantes, sobreviventes da Terceira Grande Guerra.

- Mas o tempo deteriorou a tudo. Não existem mais diferentes nações. Somos como nômades. Dependemos apenas do nosso próprio esforço.

- Então, Jonas, explique um navio escravocrata rumando ao desconhecido.

- É a única forma de nos pôr em marcha. Concordamos em sermos subjugados em prol de maior eficiência numa árdua jornada. Haveria conflitos caso fôssemos meros passageiros.

- Está certo. Mas não é isso que desvendei. Como disse, somos sacrifícios para este farsante deus Gogol que impregna a face destroçada de nosso planeta com seu nome em tudo que coletamos. Rumamos para uma troca. Pense comigo. O capitão retorna numa embarcação moderna, diz que foi recuperada por nossos amigos que já estão lá há anos prosperando em ferramentas e tecnologia. Traz frutos exóticos, espelhos e bijuterias. Nós nos conformamos com isto e aproveitamos os presentes. Mas a verdade está mais além.

José Jocasta desperta abraçado ao remo. Vira o corpo com truculência em direção a Lourival.

- Enfiarei minhas unhas afiadas em seu estômago e arrancarei suas tripas se não calar sua boca podre de falácias.

- Pode o fazer, quando acabar minha versão.

Germano Gentil abre os olhos na penumbra e ferinamente contorna o pescoço de José com a corrente de sua algema.

- Mate minha ajuda neste remo pesado e comerei sua alma, que encontrarei ao fuçar todo o seu corpo por dentro, verme asqueroso.

Lourival Maestro estrala os dedos e prossegue.

- O capitão irá acionar algum tipo de mecanismo escondido no porão desta ultrapassada galera e sua cabine irá se transformar em um ataúde à prova de água. Isso o protegerá dos homens que virão nos recolher. Estes homens são soldados que perpetuam antigas gerações guerreiras e eles vivem num país belicista, repleto de tecnologias mortais, a mesma que deu cabo de nosso mundo. Eles precisam de uma coisa que somente nossa população braçal pode fornecer: mão de obra pesada, para os mais variados e humilhantes serviços. Em troca, não apenas mandam alguns penduricalhos que não temos como principalmente, dão sua palavra de que enquanto houver escravos, não lançarão uma bomba que nos varrerá para sempre da existência.

- Absurda a sua imaginação.

- Você acha mesmo, Jonas? Pois repare nas estrelas sobre nossas cabeças. São a prova da alta tecnologia que este povo domina. Todas elas são sondas espaciais prontas para dizimarem invasores. É por isto que existe esta bola de ferro presa no meio do convés. É uma espécie de sinalizador.

- Eu me diverti com sua conversa. Saberemos a verdade quando chegarmos.

- Saberemos agora. Já ouviu como Pauapique se comunica com o irmão?

Germano assovia entre as palmas da mão fechadas em concha. Tão logo o rangido do alçapão da proa é ouvido, nas sombras se arrastam Pauapique e Palafitas.

- Acorde, Generoso Carmim. Ande, desperte.

O franzino rapaz abre os olhos e olha em volta, atordoado com o repentino chamado.

- É hora de provar aquele ponto do qual debatemos por tanto tempo.

- Ah, enfim.

Ele ergue os dois pés até o limite dos grilhões e bruscamente estica as pernas por baixo da banqueta, pousando a sola no tornozelo pútrido de Jesus, logo à sua frente. O osso e a carne se esfiapam no chão. O pé tomba de lado, solto de uma vez por todas de seu dono. 

- Puxe este pedaço. Esconda-o!

Jonas joga metade de seu corpo com fúria na direção de Generoso Carmim, mas é impelido pelas fortes mãos de Germano.

- Filho da puta. Cão raivoso.

José Jocasta, no primeiro agudo de seu grito, tem o pescoço quebrado pela corrente de Germano. Jonas absorve em silêncio a situação na qual está envolvido. Jesus José Maria está acordado, em um transe de miúdos gemidos.

- Boa noite, gêmeos.

- Carne.

- Carne.

Generoso Carmim empurra para o lado de Jonas os corpos de Jesus e José. Germano segura o toco do pé entre as mãos.

- Querem a carne?

- Carne.

- Carne.

- Tragam a bola de ferro até nós e daremos a carne toda. Dois corpos inteiros. Meses de boa comida.

Demora metade da madrugada para os estranhos irmãos rolarem a pesada bola até a presença dos negociadores. Os corpos são entregues, suas correntes quebradas com os dentes de chumbo dos canibais, por fim, rapidamente puxados para o subsolo da galera.

- E agora, Lourival? O que acontece?

- Não sei. Realmente, não...

Um laser risca o céu, vindo da mais brilhante estrela, dizimando o corpo de Lourival e consumindo Germano e Generoso em sua chama mortal. Os demais turistas-escravos acordam com o brilho intenso percorrendo a embarcação, matando e tocando fogo na madeira. Grande Morsa, talhado na barriga pelo facho incandescente, olha com horror para a bola de ferro deslocada de seu lugar original. Toda a estrutura parte em grandes pedaços, esfarelando-se no mar. Jonas cai sobre um tablado de jarras, flutuando na serenidade das águas, contrastando com o incêndio. Capitão Varonil Feudal observa tudo de sua cabine. Impassível, ele gira uma roldana que desloca o cubículo direto ao mar. Um perfeito ataúde, lacrado e a prova de água. 

...
A noite finda e uma manhã ensolarada ganha cores. Jonas desperta na orla de uma praia tropical. A sua frente, um sem fim de bananeiras, carregadas de cachos. Levanta-se, ainda zonzo por conta da maré. Todos os corpos, até mesmo os restos queimados, estão enfileirados ao seu lado. Homens e mulheres com vestes coloridas e pulseiras fluorescentes, observam com curiosidade o náufrago sobrevivente.

- Abaité!

- Abaçaí?


Jonas Jantar cambaleia, os lábios secos ensaiam uma saudação em Tupi. Mas as palavras se perdem diante dos troncos das bananeiras que caem aos montes no fundo. As pupilas dilatam diante dos tanques que vêm surgindo. O funil da bala gira em sua direção. Um nativo lhe oferece um singelo espelho partido. Um sorriso, retribui Jonas, pouco antes de morrer.

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