quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Noticias do fim do mundo






EXPRESSO VIDA



Ano 01 / 21 de Outubro de 2014 / Edição numero 01



AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO



É com uma felicidade esperançosa que chegamos até suas mãos com as visões do estado das coisas. Desculpamo-nos de antemão pela cópia deformada da tipografia e da qualidade deste pedaço de papel que agora seguram. É importante que mantenhamos este meio de comunicação para gravar os fatos advindos das além fronteiras. Não somos exímios jornalistas. Somos sobreviventes como vocês. E tão rápido nos recuperarmos do baque catastrófico que ocorreu ao planeta, nos agruparemos em posição privilegiada.

Do nosso observatório temos um panorama vital do restante da civilização. Nossa matéria prima é escassa e dividida por quatro direções: norte, sul, leste e oeste. Rogo para que transmitam as informações aqui contidas entre o máximo de irmãos. É de suma importância manter os registros, para que venhamos a reerguer uma nação humana e decente.

Quem lhes carrega tão precioso conteúdo é o Mensageiro. Dez mensageiros voluntários, que percorrem o árduo trajeto por entre escombros de perigos mil. Tratem com zelo o jornal e seu mensageiro. Somos todos batalhadores e ainda mais o é este mensageiro, que em sua pressa lhes deixou esta cópia do Expresso Vida. Aqui onde estamos, somos dez homens e cinco mulheres. Somados aos mensageiros, totalizamos  vinte e cinco adultos. Informem o Mensageiro da quantidade de sobreviventes que formam seus grupos. A nossa união é vital. Este é o primeiro marco. Marquem esta data.



Abraços confortantes



Senhor Vida



DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE



Lembro-me com temor da fatídica tarde as vésperas de entrarmos em 2014. Aguardava os familiares chegarem ao meu lar para iniciar os festejos fartos, de refeições gulosas e bebidas confortantes. Uma onda empolgada de vida, com muitas promessas e premissas para o ano vindouro. Eu bem sei que ninguém teria previsto de tal forma aquele som tenebroso. Afinal, o que tinham de tecnologia os governos da terra para, tal como em filmes,  saber com antecedência do risco iminente? Nada, somente uma estufada ostentação de um conhecimento arcaico. Mesmo que inevitável, merecíamos um aviso, uma palavra de conforto. Já fui mais racional, o suficiente para desprezar a vidência, o ato profeta, o misticismo interesseiro. Mas é de cair o queixo de um cético. Foi de cair para mim. Naquela tarde,  uma sincronia horrenda. A campainha ressoou aguda e, ao mesmo tempo, um zunido ainda mais agudo a abafou e as janelas tremeram. Pensei: “O que estão fazendo os vizinhos?”. Corri à porta, que estava sendo socada por algum parente em súbito desespero e  foi tão simples o ato de abri-la, para em seguida ter poucos segundos para olhar minha tia esbaforida. Atrás dela a sombra do universo, tão veloz que tirou a reação de todos. Um baque distante de nós. O suficiente para soterrar meu lar e de todos vocês, creio eu. Como retirar as lembranças de minha mente? Um observador lesado pelo objeto de estudo. Preferiria ter morrido com as massas. Mas, Deus colocou a mão em forma de concha sobre meu corpo e intacto eu caminhei pelo vale das sombras.



Amigos, nós temos pouco espaço e muito a oferecer. Na próxima leva de registros continuarei meu relato. Um sobrevivente como vocês. Será que vimos as mesmas coisas?



Santo Geraldo



A SAÚDE É O CAMINHO



Conselhos importantes de um médico



Queridos, assumi um compromisso de vida para com a vida de meus semelhantes. E mesmo na intempérie do fim do mundo como o conhecíamos, reúno forças para que possamos enfrentar as adversidades e salvaguardar o bem precioso da vida. É notável a extrema poluição causada por elementos componentes da superfície terrestre. A poeira, que cobre parcialmente nosso alcance de visão, irá assentar com o passar do tempo, é o meu palpite. O caso é que não temos tempo para esperar. Problemas básicos irão acometer nossos “cascos”. Visão turva, conjuntivite, alergias na pele, garganta e boca secas, febre, desidratação, complicações respiratórias, asma, convulsões e um sem fim de pequenos colapsos. Tenham, acima de tudo, otimismo. É de primeira ordem a necessidade de hidratar o corpo. Há muita água ainda disponível, pelo menos aqui, conseguimos coletar um volume considerável. Limpem a pele, organizem os abrigos. Não permitam o acumulo da sujeira. Sei que é difícil o momento, mas sabemos o quão importante será mantermos um ambiente saudável. Em próxima oportunidade falarei sobre bolsões de ar e filtragem. Se houver médicos entre vocês, gostaria de saber.



Doutor Marcus Genoveva Siqueira



COMIDA E ABRIGO



Juntos, vamos conseguir!



Cobertores, colchões, travesseiros. Arroz, feijão e farinha. É mais do que o ouro e a prata já foram. Sejam, acima de tudo, solidários com o próximo. Esqueçam a palavra monetária. Não façam com que itens básicos virem moeda de troca. Não quero acreditar que ainda reste a mesquinhez do ego em um tempo bravo como este. Ponderem e sobrevivam.



Graciela Ramos 



UM GOVERNO, UMA NAÇÃO



É disso o que precisamos. Todos de acordo? Não sei, mas aqui entre nós, os novos comunicadores, somos a favor de uma rédea racional para guiar a sociedade. Particularmente, creio que a democracia não será a melhor saída. A verdade é que, num primeiro olhar, constata-se tristemente que a humanidade está à beira da extinção. Necessitamos de um líder nato, conhecedor, centrado, justo. Sou esta pessoa. Acreditem em minha pericia. Tenho 45 anos, vinte e três deles dedicados ao exercito, sou um sobrevivente de grandes habilidades e espero alavancar uma nova lei de convívio. É uma honra.



Saudações incomensuráveis, colegas.



Agente Vermelho



NOVO MUNDO



Não sabemos ao certo a periodicidade destes escritos. Queremos fazer o bem maior, deixando o máximo de pessoas informadas com uma visão ampla do que está acontecendo ao  planeta. Cuidem dos mensageiros. Eles têm três dias de descanso e sete dias de longo trajeto para ir e vir. Tenham fé.



Abraços confortantes



Senhor Vida.





EXPRESSO VIDA



Ano 01 / 12 de Novembro de 2014 / Edição numero 02





AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO



Bravos senhores, senhoras e crianças. Nossa demora provocou grande ansiedade e preocupação entre vocês, tenho certeza. Novamente, noticias do fim do mundo chegam até suas mãos. Espero que estejam bem. As folhas que seguem, estão em parte queimadas, amarrotadas, amareladas, esburacadas e com considerações finais escritas em tecido. Estamos fazendo o possível, de todo o coração. Nossos mensageiros voltaram à base, sãos e salvos. Viva! Temos números confortantes para informar. Segundo uma contagem superficial, dentre todos os agrupamentos encontrados nas direções percorridas, somos quase novecentos ao todo. Médicos, engenheiros, advogados, escritores, donas de casa, comerciantes, autônomos, soldados, policiais, esportistas, crianças e segue uma lista imensa de funções diversas. Que grande alegria saber das crianças! Nosso futuro será vasto, meus caros. Temos uma região com um lago, vejam só que impressionante. A água é turva, mas consumível. Quem está em falta de mantimentos, deve seguir para o oeste, perto do meteoro em forma de bola. Creio que todos podem ver este intruso espacial, grande como uma montanha. É lá que sobreviventes se agruparam em torno do lago. A depressão da terra, certamente abriu algum veio subterrâneo para esta água abençoada. É um prazer narrar as boas novas.



Abraços confortantes



Senhor Vida







DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE



Choros e uivos guiaram meu caminho cego. Eram tantos os restos de corpos que tal visão não mais incomodava os olhos. E o cheiro pútrido não se podia evitar, era o menor dos problemas. O terremoto perdurou por quatro meses, sem maiores estragos do que os feitos pelas grandes montanhas que caíram do céu. Os dinossauros certamente passaram por algo semelhante. Estarrecido, passei por um sem fim de rochas negras. Toquei-as e rastejei por galerias geladas e amedrontadoras. Não compreendo o por que das formas geométricas perfeitas, aparentemente. Alguém que me lê, deve ter se deparado com o monólito em forma de pirâmide. De que canto da galáxia se desprendeu tal aberração? Nós que escrevemos neste dito jornal, estamos refugiados sobre uma destas rochas espaciais. Com a dissipação inesperada do pó, vemos com clareza, ao leste, uma formação de monólitos retangulares, cravados em diagonal por quilômetros a perder de vista. Existe uma lógica, um plano em tudo isso? Já não me preocupa a presença destas pedras. Preocupa-me mais a mancha escura pairando estática acima de nossas cabeças. Daqui do alto, ouvimos  um rugido. Trovões? Chuva? Aguardemos.



Santo Geraldo



A SAÚDE É O CAMINHO



Conselhos importantes de um médico



Queridos, muitas questões retornaram com os mensageiros. Em especial, chamou-me a atenção o caso da senhora Jussara da comunidade autoproclamada Coração de Deus, no extremo sul. Pela descrição do Mensageiro 07, a senhora apresenta sintomatologia de uma infecção bacteriana, talvez. Entenda, é difícil um diagnóstico à distância, mas, no “apocalipse”, ele é necessário. Conte-me sobre a evolução da enfermidade através do mensageiro.



Vamos falar da filtragem de ar. Como previ, muitos estão com complicações respiratórias. Ardência ao respirar é um sintoma preocupante. Se não podem se locomover do local, utilizem panos úmidos no ambiente. Costurem lençóis velhos e os usem como cortina. Sei que a água fará falta, mas com o uso ponderado, todos usufruirão da boa saúde até que as coisas melhorem. A qualidade do ar está melhorando, vemos os primeiros raios solares atravessando as nuvens. Esperança, meu povo. Há uma chance de vegetação, pelo menos é o que podemos ver daqui do alto.



Doutor Marcus Genoveva Siqueira



OREMOS



A fé em Deus é fruto colhido nesta jornada de provação. Lembre-se de Deus, não importa qual for a sua religião. Não deixe a blasfêmia do diabo subjugar teu coração.



“Direi do Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio. Salmo 91-2”



Ana Maria Rosa





HUMOR É VIDA



Até no fim, vale um sorriso



Por que os peixes comem muito?

Porque eles estão sempre com água na boca!



Ai, ai. Estou louco pra conhecer este lago do qual os mensageiros andam falando. Quem imaginaria que o fim do mundo ia combinar com pescaria?



Beijos, lindinhos.



Osmar Telada





UM GOVERNO, UMA NAÇÃO



Respeito é uma atitude do humano consciente. Espero ganhar o seu, meu caro sobrevivente e amigo. Estamos trabalhando na reconstrução do nosso mundo. O pesadelo está a quilômetros de distância. Tocamos a vida, preparados para um novo ataque. Não podemos fugir de uma pedra que cai do céu, mas podemos lutar contra quem jogou essa pedra. Força! Somos a resistência. O grito maior será o nosso. Comigo na força fronteiriça. Olhem os céus, aquela mancha é o inimigo.



Agente Vermelho





NOVO MUNDO



Esperamos mais relatos de vocês sobreviventes, para rechear a próxima edição.



Abraços confortantes



Senhor Vida



EXPRESSO VIDA



Ano 01 / 05 de Março de 2015 / Edição numero 03





AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO



Estou impressionado com as reclamações a respeito de nossos esforços. Tenho que discordar das opiniões dos desgostosos. Criticas sobre a inutilidade das matérias? Acham que é fácil escrever sobre intenso temor, engolfando as lembranças dos familiares mortos e ainda buscando a própria sobrevivência? Não discutirei sobre as mensagens recebidas. Somente respondo que as utilizações de um rádio, como bem indagaram, não está nos planos e nem nas possibilidades precárias. A voz é efêmera, a escrita eterna. Destaco, pois, o milagre que é saber que temos ainda vegetação nos quatro pontos cardeais. E ainda, agradeço o envio dos tubérculos. Viva! Que a vegetação se torne...



Uma doença contagiosa.



Senhor Vida



DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE



Antes das coisas melhorarem, elas certamente vão piorar. A mancha, a sombra que estava engolfada nas nuvens espessas, desceu e mostrou a face repugnante, como podem observar. Estamos diante de uma invasão alienígena? Proteja-nos bom Deus. Uma serpente com nervos desceu entre os monólitos. Sua extensão e largura parecem inconcebíveis. O rugido aumenta no ar. Me recuso a dizer com o que se parece de verdade esta aberração. Estamos apreensivos, pois as rochas geométricas abriram comportas! Delas saem grandes maquinas com canos apontados para o alto. Não vemos o que, ou quem, as pilota. Eu tenho medo!



Espalhou-se.



Santo Geraldo



A SAÚDE É O CAMINHO



Conselhos importantes de um médico



Abram os olhos! Seja lá o que for, está nos destruindo. Os mensageiros bem sabem. Questionem o raciocínio deles. Faleceu a senhora Jussara.



Matem-no.



Doutor Marcus Genoveva Siqueira





UM GOVERNO, UMA NAÇÃO



Parto para a batalha. Agora sabemos que existem criaturas no interior das rochas. As cidades dizimadas são receptáculos da ameaça. Junto de voluntários do leste, averiguarei o que são de fato. Confie em mim cidadão, seu líder.



O vetor do vírus



Agente Vermelho





HUMOR É VIDA



Até no fim, vale um sorriso



Eles me proibiram de fazer piada com a nossa situação. Mas, oras, o melhor é rir da própria desgraça. Ainda há muito por vir. Tanto faz, paspalhos!



O Mensageiro



Osmar Telada



NOVO MUNDO



As entrelinhas do destino, meus amigos. São elas fundamentais! O ataque vem das ameaças externas e, as vezes, dos compatriotas, infelizmente tombados. É desesperador!



Numero 07



Senhor Vida
















quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O encontro com Aniversário





Leonardo rolou para fora da cama ainda embolado em seu edredom. Caiu com os pés encaixados em um par de chinelos. Pôs-se de pé como uma cobra, sorrindo com olhos miúdos em direção ao facho de sol que penetrava pela janela. Arrumou-se com um traje esporte, apertou o relógio digital no pulso e foi à cozinha.



Bom dia, mãe.



Bom dia, Leo.



Ele apertou uma tangerina do cesto e rasgou a casca com o dedão.



Parabéns, meu lindo. Feliz aniversário.



Sua mãe o abraçou com carinho e ternura. Acariciou seu rosto liso e beijou-o na testa.



Valeu. Tem presente ou é só abraços e beijos?



Claro, seu apressado. Já que está cobrando. Pode pegar lá no sofá da sala. Espero que goste.



Ele largou a tangerina na mesa e correu para a sala. Desembalou a caixinha deixada pela mãe no sofá e contemplou o DVD.



Fantástico! Fantástico!



Gostou querido? Seu pai disse que você ia adorar esse jogo de guerra. Parece que acabaram de lançar. Foi bem caro. É bom que goste mesmo, escutou?



Pode crer que vou terminar ele rapidinho.



Leonardo foi para o quarto e colocou o presente sobre o videogame. Voltou à sala e ao abrir a porta da rua sua mãe o chamou.



Léo! Querido... Vai aonde?



Mãe, hoje é o meu dia, que dia mais feliz! Parabéns, parabéns!



Leonardo riu do tom de seu cantarolar.



Certo então, Léo. Vai passear. Mas não fica na baderna com os amigos e volte antes do almoço, pois sua avó virá aqui te dar um beijo e a noite seu pai vai te levar pra sair não sei aonde. Não vá beber, escutou?



Tchau!



O clima estava fresco, o sol deliciosamente brilhante e as ruas quase vazias naquele sábado singelo. Léo comprou cigarros na padaria da Matriz. Riscou três fósforos, até que entrou na viela para bloquear o vento e acender um deles com propriedade. Soltou a baforada e arrepiou-se. Sentiu a tontura da primeira tragada matinal. O sol rebitou seus olhos por um segundo e, no caminhar de passos largos, o pé esquerdo enroscou-se num arco de aço.


Estavam lá um montinho de areia e uma pilha de tijolos, da obra improvisada por um morador da viela. Enquanto Leonardo caía, numa fração infinitamente curta de tempo, sentiu um frisson estranho. A pupila captou o contorno das pontas de lança voltadas em direção a sua cabeça. Pontas de lança que estavam presas nos pedaços de tijolos. Tamanho foi o aperto no peito que acometeu Leonardo, que as mãos agarraram duas lanças cada uma e seu corpo parou em perpendicular.

No baque da queda que fora interrompida, junto à dor do rasgo  na pele da mão, Leonardo viu um vulto saltar do ombro direito. Um vulto que, aos poucos, tornou-se nítido para o garoto. Um algo disforme, despido e sem sexo, de cor verde, reluzindo fracamente. Leonardo, estupefato com a situação e, a partir daquele instante, não sentiu mais a dor nas mãos feridas. O ser verde permaneceu longos minutos o encarando com olhos brancos. Leo chorou silenciosamente e após engolir a bola em sua garganta, juntou toda sua coragem para indagar a estranha aparição:


Quem é você? O que é você? Pode me ajudar?


O ser moveu-se pela primeira vez desde que a situação se engendrou. Caminhou para o lado de Leonardo e sentou-se no monte de areia. Nestes curtos passos, o corpo transparecia, de forma anuviada, a paisagem urbana do beco. Ao tocar os quadris na areia, parte desta flutuou pelos pés e estômago da criatura. A voz, levemente anasalada, ressoou com gentileza:



Olá, Leonardo! Sou uma energia vinda de outro acorde dimensional. Tu me conheces pela alcunha de “Aniversário”. Não sou uma divindade. Não faço parte de um pensamento coletivo que me coloque nas barreiras do bem e do mal, como vocês as definem. Cabe a mim, por prazer e convenções antigas, lhe assistir em todos os dias de seu nascimento. E, no momento, eu ainda não posso ajudá-lo. Talvez não o faça, de qualquer maneira.


O garoto gritou desesperado. Tomado pelo medo, Leonardo clamou pela mãe.


Pelo amor de Deus, socorro! Mãe! Socorro!


Estamos num tempo fixo, fora de sua dimensão. Você esta perfeitamente invisível e inaudível. Tenha paciência. Verá sua família de uma maneira ou outra. Tenha calma, eu aguardo junto de ti pela decisão.


Após uma espera extenuante, ele pôde engolir um fio de choro e, com os olhos vermelhos e inchados, tomou a palavra para si naquele silêncio opressor:


Eu estou morto. E estou no umbral e você é um demônio ou um anjo. Meu corpo está paralisado e não sinto dor alguma, mesmo que olhe para minhas mãos e as veja cravadas neste par de pontas de ferro imundas. E você espera eu tomar consciência disso?


Pelo contrário. Está vivo! E me surpreende deveras! Tua força de vontade foi tão forte no momento em que se deu a queda, que a vida, já no sentido natural dos eventos, emaranhou-se numa teia de improbabilidades. E assim, nossas vibrações dimensionais, por um microssegundo, tocaram-se. E eu não pude me esvanecer. Portanto, estamos aqui. 


Você está dizendo que eu iria morrer hoje?


Possivelmente. Mas é muito prazeroso sentir a forma humana da Vontade. Quase posso vê-la. Permanece, no entanto, em outra dimensão.
 

Como assim? Você é o Aniversário em pessoa?


O ser riu abertamente e posou uma mão sobre o ombro de Leonardo.


Sou isto mesmo, que vocês nomeiam como: “Aniversário”.


Ele novamente debulhou-se em um choro forte, reforçando os clamores pela figura materna. Aquilo que se apresentou como Aniversário, passou a mão no próprio peito que possuía uma bola alaranjada e esfregou em seguida os dedos leves sobre a cabeça do garoto, soltando um liquido que logo evaporou. Leonardo foi preenchido em seguida por uma sensação de calma e alegria que o emudeceu.


Nomenclaturas, Leonardo, são palavras construídas pela necessidade de comunicação e sobrevivência do ser humano ao longo de sua necessária evolução. Pontos chave da vida, como nascer, morrer; e as passagens que vocês absorvem como rituais: amar, odiar, desejar. Enfim, todas as suas representações arquetípicas, mas em outro plano. Sou uma energia racional que domina os impulsos necessários para contemplar e comemorar o nascimento de cada ser habitante deste tempo. Sou mais antigo que seu primeiro pensamento sobre o que é antigo. Não... Eu sei que pensa em religião. Mas não posso abranger nosso encontro enquanto seu caminho não for ponderado.


Ponderado por quem?


A única vez que um humano conversou comigo, foi por um descuido em um dia especial. Era aniversário de um pescador solitário no interior do Canadá e quando raiou o dia, tive a agradável surpresa de visualizar o Amor sobre um lago parcialmente congelado. Era a primeira vez que nossas vibrações se equiparavam ao mesmo tempo. E aquele azul profundo de contornos vermelhos acenou gentilmente para mim. Claro que, mesmo com minhas percepções lúcidas, logo fiquei fraco, pois aquela visão me consumiu. No mesmo instante o velho pescador acertou-me com uma machadinha. Afinal, lago congelado não permite pesca. Seria muito trabalhoso cortar o gelo sem uma machadinha.
 

O amor?


Sim. E naquele dia conversamos sobre tudo na vida. Foi contra a regra, mas foi por amor. E tudo é perdoado por amor. O Perdão mesmo, ele é tão cinza...


Estamos quebrando a regra?


Tantas perguntas, Leonardo... 


Você pode me retirar daqui e me pôr em casa. Meu pai quer sair comigo e minha mãe e minha avó vão chorar muito. Eu quero tanto viver. Por favor!


O Aniversário flutuou.


Estou sentindo que nossa espera chega ao fim. Fique calmo, Leonardo. Está entre amigos e não haverá dor.


A mão verde empurrou de uma vez a cabeça do garoto e esta atravessou o ferro pontiagudo. O restante do corpo caiu ao chão com um baque seco. Neste momento, na entrada do beco, uma senhora derrubou as sacolas e gritou por socorro.


Não nos veremos mais, que pena! Foi um prazer, Léo, desde que você nasceu!


O garoto levantou o peito do chão e puxou seu crânio com violência da estrutura fatal. A dor excruciante tomou conta de seu corpo. Uma voz diferente, uma voz nova e potente fez-se ouvir por trás de sua orelha direita:


Livre-se da dor. É só um resquício de sua carne. Conheça sua nova vibração. Limpe sua mente. Sinta-se lisonjeado pelo encontro com o Aniversário. Mas agora, decidi o levar. Conheça-me! Compartilhe!


Leonardo virou o rosto para trás e não mais sentiu medo ou qualquer sentimento ao ver o que estava ao seu lado.


Eu poderia apostar que você tinha essa cor! Bem que poderia! – Observou Léo, com felicidade na voz.

E ambos sumiram em uma fenda colorida no chão.
·.·.·.