segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Abaçaí / abacalhoar / Abacamartado / Abaçanado / Abaçanar


Urerê agachou na beira do rio para beber água. Sentiu uma presença em suas costas. Por intuição, mergulhou no rio sem olhar para trás. Boiando no trecho mais calmo das águas, viu outro indio no mesmo local onde havia agachado.
"Quem é?" Gritou.
"Sou eu, o seu perseguidor."
"Suma. Suma daqui. Você é um Abaçaí."
"Pegue na água esse peixe. Vou abacalhoar ele para o jantar."
Urerê sentiu então um peixe roçar sua mão submersa. Prontamente o afugentou e então nadou até a margem oposta. Saiu da água e correu para a mata fechada. Topou com o seringueiro Matias, único morador branco da região. Ele segurava um tronco de madeira abacamartado.
"Calma lá, indio. Seu lado de caça é pra lá. Pode voltar."
"Um Abaçaí me persegue."
"Não quero confronto tribal aqui. Volte!"
"Me dá o tronco. Estou de mãos vazias."
O seringueiro Matias entregou a madeira para Urerê, esperando dar fim a chateação. De volta a margem, viu o Abaçaí no mesmo ponto, deitado sobre folhas secas. Então apontou o tronco abacamartado e gritou: "Vou te matar com o chumbo". O Abaçaí pôs-se de pé.
"Acha que sou como a anta? Não caio nessa. É truque de homem branco. Fraco."
Matias surge da mata, vindo para conferir se o indio retornara para o lado certo do rio.
"Isso é ridiculo. Vamos, nade para o outro lado."
Furioso, o Abaçaí rogou uma praga: "Como o abaçanado de minha pele, vai o homem branco abaçanar. Abaçanado então, te seguirei por toda a vida, até enlouquecer!"
Matias retirou um revolver de sua cintura e atirou em Urerê. Mirou no Abaçaí e atirou mais duas vezes. Urerê tombou sem vida dentro do rio. Abaçaí urrou, com um ferimento no estomago. Mancou para o meio da mata. Matias guardou a arma, satisfeito. Apenas no fim do dia, em sau casa, viu com horror no espelho, seu rosto abaçanado.

ababila / ababocado / ababelado / ababelar / ababil



Mussá fitava o horizonte dourado do deserto. Daila, a esposa, agachou-se ao seu lado, na varanda do quarto, preocupada com o silêncio do marido.
"Mussá, me conte sua preocupação? O que vem do infinito das areias?"
Sem tirar os olhos do longinquo limite de visão, limitou-se a pedir um jarro de água.
Daila encheu dois copos. Um para si e o outro colocou entre os dedos do homem. Eis que Mussá agitou-se e o copo perdeu-se no chão.
"Mussá, Mussá, o que ocorre?"
Ele apontou para a frente, trêmulo, as faces vermelhas.
"Ababil, um Ababil, Daila. Olhe! Alá condena nossas vidas de pecado."
O copo de Daila também foi ao chão. Juntos viram nascer, no horizonte do Saara, um ciclone de areia, uma imensa coluna ababelada e escura, recheada de trovões retumbando em seu interior.
"Vamos descer, vamos correr"
"Vamos morrer, Mussá".
No quintal, puderam ver a sombra do topo da coluna abraçando as paredes da casa. E então essa coluna dividiu-se em duas e o casal se abraçou ababocado pelo som violento que pousava no telhado.
"Daila, são ababil e ababila... Suba na..."
O casal levantou vôo no turbilhão ensandecido dos demônios ianques, ababelaram seus corpos com a força do vento.
"Burn the house down... big bad bada boom... soldier!"
Apache Thunder Thor e Apache Tomahawk completaram a missão e retornaram para base. Mussá e Daila tornaram-se apenas vestigios, carregados por Alá, nas asas mortais de Ababil e Ababila.

aal/ aalclim / aaleniano / aalênio / aaquênio /



Três irmãos, Aaleniano, Aalênio, Aaquênio, após arrastarem-se pelas areias escaldantes do deserto, toparam com um camelo morto. A carcaça do animal estava comida pela metade. Aalênio cheirou a carne rasgada e avisou seus irmãos de que ainda estava fresca. Os três beberam do sangue e comeram da carne, desesperados que estavam pelo castigo do Saara. Aaquênio ergueu a cabeça e cuspiu tudo o que mastigava. Com terrivel dor, espargiu  pelas areias. Aalênio cheirou mais uma vez a carne, provou mais uma vez o sangue. Olhou então para Aaleniano e disse: "Este camelo foi abatido por mercadores da morte. Dos restos que não mais lhes serviam, misturaram pedaços de aalclim e então besuntaram com aal para mascarar o forte cheiro de veneno"! Ao término da fala, a garganta em brasa, o sangue vazando dos olhos, Aalênio viu mortos os irmãos e enterrou todo seu corpo para dentro da carcaça, de modo a servir de aviso para outros incautos.

aba / ababa/ ababadados / ababadar / ababaia

“Entorta a aba do boné, moleque! Aba reta é do capeta”.
“Mas mãe...”
“Fica quieto. Me passa a ababa que vou fazer um chorume pra Jesus”.
“Mãe, Jesus não come gordura!”.
A mãe deu um safanão na cabeça do filho que imediatamente a aba do boné voltou a ser reta.
“Entorta essa aba, criatura”.
O garoto ajoelhou aos pés da mãe e apertou as mãos no ababado do vestido dominical.
“Tu quer ababadar mais ainda o ababado, ô disgraça”?
“Mãe, vê se perdoa eu”!
Gentilmente a mãe acariciou o rosto do garoto e entortou novamente a aba do boné que teimosamente voltara à forma de prancha.
“Felipino, amor da mamãe, te perdoo. Agora vá na ababaia e pega uns frutos verdes que vou terminar o chorume de Jesus”.
“Mas mãe, Jesus não come gor...”
E tomou outro safanão. O garoto seguiu tristonho para a ababaia, com a aba reta novamente.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Quem lançou o boato?



Estavam na ronda do meio dia, rosnando com fome, o delegado Patranha junto com o policial Dinamar Silva Cunha, na Veraneio 86, única naquele distrito modesto. Quando foram parados pelo corpo corpulento do Aparecido, vulgo Dota. Após a brusca freada, desceram os homens da lei para lascar safanão na bochecha vermelha do Dota, mas, experiente como era, delegado Patranha notou a extrema urgência que os olhos do sujeito passavam e interrompeu a braçada.

"O quê que tá pegando, gordão?"

"É... o quê que tá pegando, gordão?"

"Cala boca, Dinamar. Eu faço o questionário."

"... Claro, claro. Perdão, doutor."

"Desembucha, Dota."

"Lançaram... senhor... lançaram por aí... Lançaram um boato cabeludo."

"Porra, e o que disseram?"

"Senhor... não fui eu, entende? Escutei logo cedo o boato passando."

"Fala, caralho."

"Que o delegado Patranha na verdade é delegado Peitinho."

O delegado tombou a cabeça para o lado para derramar mais fundo aquelas palavras em seu ouvido. Sacou do trezoitão e pipocou três tiros para o alto. E naquelas bandas, três tiros para o alto era sinal de que a coisa estava na chapa quente.

"Dinamar, fecha a rua com a caranga. Quem passar aqui você vai encostando na parede e vamos espremer até descolar o assovio que pariu o boato. Esse filho da puta vai aparecer rapidinho. Caceta!"

O policial arrepiou com tudo na entrada da rua enquanto o Dota era o primeiro a ser posto pelo delegado no paredão. Do outro lado da rua, vazavam no 'pé-dois' quatro mamulengos que apertavam suas marmitas, sendo todos frisados pela pontaria e o berro do Patranha. Neste movimento, chegava o Dinamar com uma fila indiana com nove mal encarados e cinco mal encaradas.

"Muito bem, muito bem, cambada, quem começou o boato?"

"Que boato, doutor?"

"É, doutor. Que boato?"

"Que o doutor delegado Patranha se chama delegado Peitinho"

"Cala a boca, Dinamar. Quem faz as perguntas e as respostas sou eu"

"Mas, as respostas, doutor?"

"Vamos lá, desavergonhados, digam o nome."

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Aparecido, vulgo Dota, vulgo Gordinflas.

Christiane Torrone, vizinha do Chico, saladeira de madame.

Emilio Fué, o humus de minhoca, pisadinha torta.

Tio Xonas, espetinho de gordura, abafador de bafômetro, estrela do Pari.

Kleber K, o do gato, passa o fino, dono da caçamba, cavalo louco da porra.

Vera, a formigona de jardim, senhorita pureza.

Tim, vulgo Tintuba, janela de vento, o que sabe que nada sabe, o picuinha.

Ricardo Rico, o calor do Ceará, o areia no cu.

Fabiana Jija, paçoca feliz, a macumba da janta, a não-é-biscoito-porra.

Firmino Menino, o liso, boateiro profissa, era uma vez.

Roni Horroroso, cu com limão, o banheiro químico de carnaval, dez pras três.

Rosa Maria, quituteira de cachaça, flor de cactus, chispa fora.

Nilva, senhorita grela beija flor, salsinha no dente, pacote devolvido.

Toni Formol, pedreiro problema, cinzeiro de lata, cabra coragem.

Seu Erasmo, tira tinta, sinuca de bico, dono do palito de dente.

Fragoso Cansado, Mija no Chope, piscou errado, virado no setenta.

Seu Rezende, feijoada da noite, 72 anos, residente de Marasópolis.

Unha, vulgo Crosta, cidra do ano novo, o carne no dente, o maciotinha.

Vini, ovo de codorna, salsicha de conserva, o porção fria.

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Após desmantelar os nomes e codinomes dos suspeitos, alguns deles velhos conhecidos na ficha policial, o delegado Patranha andou de um lado ao outro bufando e matutando. Deu mais tiros para o alto e gritou:

"Dispersa, cardume de moribundo. Não quero ouvir palavra disso aqui na região, que tô de olho."

E o pessoal debandou rapidinho logo na primeira curva da rua. Lá atrás o delegado fazia as salvas finais com o Dinamar.

"Não teve meio dessa vez pra deduzir. Acho mesmo que o boato foi plantado por gente de fora. Mas deixe... Ainda vai entrar muita fumaça no cu de quem tá me chamando de Peitinho."

"Muito justo, doutor."

E a traseira da Veraneio saiu no samba pra retomar a ronda. Ainda na curva, a turma de tresloucados foi logo bem juntada pelo Firmino Menino.

"Junta, junta, junta, pessoal."

"Eita, diga lá, boateiro profissa."

"Não me coloque nesse adjetivo, seu Erasmo. Tenho coisa pra conta."

"Desembesta, liso."

"Quem lançou o boato....Foi o Dinamar."

"Má...Rapááááis, me conte."

***

Chegando na delegacia, o doutor Patranha desligou o motor e olhou bem fundo nos olhos do Dinamar. Com a voz bem mirradinha ele perguntou:

"Você disse pra alguém que chupou o meu peitinho?"

"Disse não. Caceta."

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