quarta-feira, 31 de julho de 2013

Brasil Pós Nuclear 2040 -



"APRESENTO A VOCÊS O PÃO SOVADO"

Pão Sovado entrou no palco com um andar garboso em seus mais de dois metros de altura, feições fofas no rosto, tostado na frente e cheiroso.

"Vovô, você está chorando?"

"Eu adorava pão sovado, meu neto. Tão gostoso."

Pão Sovado acenou para a plateia que aplaudia com força e então deitou-se no carpete.

"Agora venham"

Os mais velhos avançaram sobre o homem Pão Sovado e o devoraram até restar apenas migalhas.

Atrás das cortinas, o assistente de palco segurava um pires com um tablete de manteiga. Visivelmente aturdido.

"Esqueci de passar a maquilagem!"

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Cosmogonia e a Rosa dos Ventos



Uma fagulha cruza o universo por uma era indefinida. Esta fagulha, azul e amarela, espoca nas mãos de Elohim. A fagulha luminosa se retorce e toma uma forma carnal, similar ao que viria a ser o homem. Elohim utiliza o planeta Terra para cultivar a vida. Ele cria um panteão chamado Egrégora. Para lá são enviados deuses de outras dimensões...

Elohim os abandona para todo o sempre.

Na floresta mais densa:

- Vento! Devolva-me a carne. Oh servo da danação, que o fogo divino te cegue e minha fé em Elohim esmague-o. Liberta-me, pois não tens o direito.

Terra não pode mover-se. Os galhos de uma árvore podre trespassam seus braços, penetrando na barriga e entrelaçando a espinha.

 “Ronronar a revolta, renova a ruína, ruim, ruína, ruim e ruim. Ruma à relva, oh réu repugnante”.

O som gutural escorre pela terra lodosa e enjoa os ouvidos com seu tom putrefato. Vento encara o deus cativo, encurvado sobre uma pedra preto azeviche no escopo da nascente de um rio.

No panteão Egrégora:

 Água e Fogo observam a situação através das muralhas verdes de fumaça.

- Como pôde este demônio acumular tamanho poder em meio aos terrenos?
- Vento acumulou conhecimento da Natureza, bebendo na fonte ancestral. O que fazíamos neste ínterim?
- Mel, carneiros e ambrósia.
- Sim. E tu ainda sorris da onipresença, Fogo?
- Não tente o coloquial mundano em nossas moradas, Água. Deixe para Elohim e Terra, resolverem o entrave.

Luz adentra o salão. As muralhas de fumaça verde aumentam sua vazão e as imagens ficam nítidas.

- Olhe bem, com tua visão destreinada. Aro perfeito de liga prateada é o teu olho, Fogo. Só lhe concerne o imaginário tolo que inseriu na cabeça dos mortais. Fúria abominável, deus sol, derrotado!

Corado e nervoso, Fogo afastou Água de seu lado e afundou a face quadrada na fumaça.

Na floresta mais densa:

- Rutila a revoada. Rosto roto. Reclamo o receptáculo.

- Elohim não permitirá que uma força demoníaca desnorteie a humanidade e aqui estou, pelos deuses do panteão, para frear tua gana.

- Ralha-te ruminante.

Vento dissolve seu corpo sobre a pedra preto-azeviche. Um aroma de eucalipto envolve o lugar.

No panteão Egrégora:

Fogo balança a cabeça de forma negativa. Joga o corpo em um pequeno monte de plumas.

- Bobagem a contenda. Aquele ser não tem forças para nada. A figura do diabo é mais interessante que aquele porco feito de ar.

- O conhecimento que leio naquele ser é mais vasto do que o nosso.

- Terra é um humano com regalias de um deus. Confiei-lhe a missão de deter Vento. Você está certo Água, o conhecimento alimentou o poder de seu irmão.

Um estrondo percorre o salão e pelas cortinas de cetim passam Tempo e Espirito de braços dados.

- Luz, seu velho! Abra logo as palavras para o expansivo Fogo.

- Não passam de enfeite, esquecidos até pelos terrenos.

- Fogo... Há uma década, Água encontrou a Rosa dos Ventos. Estava nas mãos de Vento.

Fogo ergueu-se sobressaltado. As plumas chamuscadas, voaram ao seu redor.

- Pilhéria, meu irmão. O inferno não pode conter a língua traiçoeira de Água. A Rosa dos Ventos foi-se com aquele vexame do Mar Morto.    

Ao redor do mundo:

Direita
Um carro permanece, boa parte da manhã, engripado no poste. O resgate já conduziu o motorista acidentado ao hospital mais próximo. O guarda de transito desvia o fluxo de veículos para uma rua adjacente. Donas de casa preparam doces de amêndoas seguindo a receita dada na televisão. 

Esquerda
Seguem os protestos na praça em frente à sede do governo. O bloco de pessoas entoa canções de cunho político. Apinham-se cartazes com mensagens sociais imperativas. Na segunda investida do batalhão de choque, os revoltosos são por fim dispersos. A contenção progride em direção ao rio, em meio a pau e pedras. Os contidos dão ré, em meio a gás e borracha. Um pedreiro coça sua cabeça ao observar o erro de medida na junção de duas paredes.

Cima
Numa plataforma, o monitor repassa instruções de como proceder para um salto bem sucedido. Mas uma das garotas chora compulsivamente. Talvez o salto seja cancelado. Uma jovem executiva dobra a barra de seu vestido enquanto aguarda um café expresso da maquina nova.

Baixo
Para levar o cervo abatido até a vila, três homens se prontificam. O caminho menos tortuoso é pelo rio. O bote é antigo, mas agüenta, em seu limite, o peso de todos. A cabeça do cervo segue submersa na água.

No panteão Egrégora:

Luz acaricia um globo espelhado. O sol reflete a manta de ouro que adorna seu corpo. Harpas flutuantes ressoam ao redor. Som derruba os instrumentos no chão e se ajoelha ao lado de Luz.

- Está certo da posse da Rosa dos Ventos? Água me contou os problemas recentes, entes, entes.

- Foi vista através da muralha de fumaça. Vento a manuseia todas as noites. Está aprendendo os mecanismos.

- Mas a peça é gigantesca. A própria Natureza a cunhou antes de entrar em transe. O querido Vento está fora de eixo. Que farei sem ele, ele, ele?

- Demônio esfolado do abismo de Furfur. Vaga no planeta desde o sempre. Nunca se deu o trabalho de pisar aqui em Egrégora.

- Ouço seu resmungo rouco. Terra está preso em seu próprio Elemental. Natureza poderia salvar sua forma humana daqueles galhos, galhos, galhos.

- A folha da floresta goteja uma seiva em seu dorso. Só o Tempo responde quando se livrará.

Tempo surge sem sua face na frente de Luz e Som.

- Digo que não tenho mais passagem a responder. Agora, antes ou depois. Espírito sentiu o limite há pouco. A última trava da Rosa dos Ventos foi deslocada por Vento.

- Baixo ente. Com ele não quero ter. Elohim deixou-nos a Rosa como sendo a guia de direções para os humanos. A mim, me corroeu por todo o sempre a curiosidade de saber o que aconteceria se a última trava direcional fosse deslocada. Mas o ato em si, gera temor.

Estalos ribombam do raio que hachura o céu. A pele de Luz retesa como a de um velho no frio. Fogo corre em direção à muralha verde de fumaça.

- A Rosa dos Ventos foi acionada!

Espírito encarna o corpo de Som.

- Você fala em temor, seu patético. Tu és um deus. Que são os humanos?

- Lunáticos, sim eles são, Espírito.

Água escorreu temeroso pelo piso de prata.

- Não subestimem a humanidade. Acontece agora uma catarse no planeta. Eles estão descobrindo a nova direção liberada por Vento. Vão vir todos nos visitar? Preparem-se.

- Espírito? Olhe minhas chamas. Ceifarei muitas vidas que aqui ousarem chegar.

Ao redor do mundo:

Direita
A aeronave, com duzentos passageiros, inclinou suas asas para baixo.
- Já vamos pousar?
- Não, não. Creio que não. Mal deixamos o aeroporto.
- Mas eu queria mesmo mudar. Ir para lá. O que você acha?

Esquerda
- Queridos, hoje vamos numa excursão.
- Professora, nós vamos para lá?
- Vamos sim... Por aqui, para lá.

Cima
Dois amigos conversam nas areias de uma praia.
- E é por isso que eu chamei a Carla para morar no meu apartamento.
- Sabe que penso agora, numa consciência de estar aqui e existir no mundo? Poderíamos...
- Ir pra lá? Vou ligar para a Carla quando chegarmos.
E os dois se juntaram a uma pequena turma de pescadores.

Baixo
Um comboio do exército sai de uma estrada esburacada na mata.
- E dá uma vontade, senhor, de metralhar qualquer um que não deixar a gente fazer um reconhecimento. Entende?
- É o que todo desbravador faz quando se move para lá, soldado.

No panteão Egrégora:

- Rompante risonho, revela revolta!

Vento percorre de uma ponta a outra a Egrégora.

- Já é tarde, Vento. Tarde para censurarmos seus atos. Tarde para desfazer a percepção dos homens. Brinque à vontade. Aguardemos a chegada de todos. É o momento de uma nova hierofania.

- É engraçado. Vejo as primeiras pessoas avançando nas novas terras. Qual poderia imaginar que além da direita, da esquerda, frente e atrás, baixo e cima, poderia ocultar-se uma direção completamente diferente? Pudera eu que tudo sei, ainda ter estas surpresas.

- Não, Espírito. Ainda pode se surpreender. Veja quem chega antes por nossas portas.

Terra passa por todos, sujando de lodo o caminho. Vento o encara com um sorriso aberto. Terra zune uma espada no ar e a crava no peito de Vento.

- Ele sangra! Oh Elohim, que mal foi liberado em ter alterado a Rosa dos Ventos?

Água abraçou Terra e cochichou em seu ouvido:

- Somos humanos, enfim?

- Foi o preço da catarse humana.

Os deuses debulham-se em lágrimas, desorientados pela Egregóra. Clamando pela força criadora maior, silenciosa em sua eternidade.

- Elohim, Elohim. Onde está tua força?

Uma nova direção:

- Olhe aquelas pessoas, filha. Parecem perdidas e confusas.
- Papai... Já que chegamos até aqui, que é lá, antes, quando havíamos partido, podemos fazer o que quisermos?
- Eu também me sinto estranho, filha. Mas eu tenho uma arma.
- Se o senhor tem uma arma é melhor começar a usar. O brutamonte de rosto quadrado está vindo com tudo na nossa direção.

“Atenção, aqui é o exército da ONU, afastem-se do perímetro e aguardem instruções”

- Permissão para abater a ameaça senhor.
- Deus! De onde surgiu aquele carniceiro?
- Ele veio... Aparentemente... De lá, senhor.
- Elimine o alvo, soldado. Vamos civilizar esta bela região. Há muito a se fazer.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Noir-Vegans nas páginas policiais, um crime brutal é narrado:



Acelga lavada e picada grosseiramente. O broto do Feijão, todo cortado. Um tal de Gengibre ralado, inconsciente num canto. Melado de cana a gosto com farfalle (gravatinha) de sêmola. Um tipo estranho. Uma festa de luxo? Naquele local pérfido?
Tomate cortado em 6 pedaços e ainda com furos exalando um aroma acre de tomilho. Eu só pensava no estalo do trigo para quibe. Aquilo revirando na minha cabeça "Trigo para quibe, Trigo para quibe..."
"Puta que pariu!"
Virei o rosto, os olhos ardendo. Era forte a visão... Uma abóbora comum, pequena, virando purê na cama. Puro purê! Um monstro ou seriam monstros? Atrocidades das quais eu via com constância. Gostaria de não ver. Não nesta noite.
Grão-de-bico no distintivo, esfreguei o dedo pra tirar uma gota de linhaça. Ervilhas tortas, sinuosas, num caminho que eu trilhava cada dia mais fundo. Meu maço pequeno de brócolis na manga. Não tinha nada a perder. Blefei para o fotógrafo.
"Pode bater a chapa, amigo".
Parecia uma cebola roxa depois de um tempo boiando naquele azeite. Surtei, desesperado, gritando por papaia. "Papaia, papaia, papaia!".  Colegas jogaram água no meu rosto.
"Acorda, Madureira. Sai dessa coisa ruim"
Concluí um arroz selvagem na noite, constatando a fuga perfeita. Não deixaram rastros. Mas o tempo é amigo do investigador.  Não tem ninguém aqui. Apenas raiz de capim-santo no terreiro.
"Assim não dá, doutor. Encerra esse caso".

O delegado estava presente. Coisa rara.

"Você sabe quem são?"

"Desgraçados infelizes, provavelmente."

Ele apontou na minha cara. Deu uma risada debochada. Se não aprontar o relatório nessa madrugada, eu tofu!

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Os trotes de Nostradamus



"trim trim"

- Escola infantil Bezerrinho, bom dia!

- “O menino nascerá com dois dentes na garganta”

- Nós não temos maternal, senhor!

- “Corcunda, será eleito pelo conselho o mais hediondo monstro visto na terra”

- Senhor, nossas matriculas estão encerradas.

- “Tarefa de assassino, enormes adultérios, grande inimigo de todo o gênero humano, ao qual fará pior que avós, tios, pais, em ferro, fogo, água, sanguinolento e desumano”

- Nossa grade educativa inclui princípios cristãos!

- “... O mundo, quando se aproximar a conflagração universal, sofrerá tantos dilúvios e tantas inundações que não sobrarão terrenos que a água não tenha coberto."

- Não temos natação, senhor!

***

"trim trim"

- Açougue Boanerges, bom dia!

- "E o Santo Sepulcro ficará durante um longo espaço de tempo abandonado, contemplado apenas pelos céus, sol e a lua."

- Sim, temos carne de sol, também toda linha para feijoada.

- "E na Cidade Santa não habitará mais que um pequeno povo, pelo número, mas grande pela sua cultura profana. [...]"

- Pra calcular quanta carne deve comprar, preciso do numero certo de convidados, senhor.

***

"trim trim"

- Alô.

- "Um Oriental sairá de sua sede
e pelos montes Apeninos verá a Gália:
atravessando céu, águas e neve,
e a todos golpeará."

- [risos] É um filho da puta esse japa.

- ..."mas ainda no mar Adriático
de cavalos e asnos roerás os ossos."

- Eu sei que é você, Pereira, larga de caô!

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Pessoas que não sabem dar uma piscadinha:



Pisca e abre a boca mostrando os dentes
Pisca com os dois olhos, mas acha que piscou com apenas um.
Pisca mas parece que vai vomitar
Pisca fazendo barulhos estranhos na garganta
Pisca e ergue um dos pés
Pisca e tem uma convulsão
Pisca e esquece de abrir o olho.
Pisca um olho de cada vez automaticamente



Arts Insolites HOJE e não AMANHÃ

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A sorte é para todos

A probabilidade de acerto é de 1 em 50 milhões. Seis dezenas a sua escolha. E o maior prêmio acumulado da história, 98 milhões de reais. As filas estão gigantescas. Até os mais incrédulos disputam os bilhetes. Cobertura massiva da mídia. Destaque em jornais internacionais. Até mesmo turistas arriscam suas chances. Ocultistas usam todas as cartas para burlar as estatísticas, desde tarô até clarividência. Vale contar a idade dos netos, a placa do carro, o tamanho das roupas, o numero do telefone, a chapa dos políticos. Qualquer matemática é a mais racional na cabeça dos apostadores.

Entrevista com Juliana Cândida, caixa da lotérica Maçã de Ouro:

“ Nossa! Está uma loucura. Durante todo o expediente fica uma fila enooorme. Estamos fazendo apenas meia hora de almoço e voltando imediatamente para o caixa. Ai, realmente estou estressada. (risos). Já nem olho para cara dos clientes, só números, números e mais números!”.

Sorteio transmitido ao vivo:

“ Atenção, a primeira dezena sorteada é... Numero 12.”

Gritos de alegria unem as famílias.

“A segunda dezena da noite, senhoras e senhores, é... Numero 13”

“A terceira bola... 14”

“Quarta dezena... Numero 15”

“Quinta dezena... Puxa vida... É a bola de numero... 16”

“Sexta e ultima dezena... Atenção... Numero... 33”

Um silêncio aterrador abate todas as casas. Não há nenhum grito vitorioso? A probabilidade é de 1 em 50 milhões. Quem será o sortudo?

O clarão desponta no céu escuro. A nave de luzes coloridas pousa silenciosa. O extraterrestre, com grandes e brilhantes olhos, pele verde e sebosa, passa por todos os presentes na sabatina do sorteio. Em suas mãos de dedos longos, finos e pegajosos, treme um bilhete da loteca.

“Xiplix Mat, Huna! Uhuuuuuuuuuuuuuuuuuuu”

“Xiplix Matt, Huna! Huna! Huna! “


A grana é conquistada pelo ser que nem ao menos constava nas probabilidades. Papéis são rasgados pela população indignada. E o vencedor parte feliz para a farra em qualquer bordel sujo dos anéis de saturno.

Sacanagem!

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Jurandir, O Malandro do Km 13.

Um conto de Paulo Henrique Facchini

Época do samba de gafieira, o jogo do bicho faz de seus dirigentes verdadeiros mafiosos, os malandros povoam os guetos, mas nenhum é tão admirado e esperto quanto o bronzeado e forte Jurandir. Morador de um cortiço humilde no bairro Km 13, Jurandir conseguia tocar sua vida a base de suas malandragens e como ele mesmo dizia: “Não confunda malandro com maloqueiro, afinal eu engano, mas não roubo!”.

Camisa chamativa aberta até a altura do peito,  exibindo as correntes de ouro maciço, calça boca de choro, sapato e na cabeça seu famoso chapéu panamá. Pra cima e pra baixo, com o gingado malandro.
Levava a vida através da malandragem. Pagava o aluguel com o dinheiro que ganhava na sinuca. Não trabalhava, era patrocinado por uma madame da alta. Para ser patrocinado ele precisava apenas ir três vezes na semana a mansão no horário do expediente do marido dela, dono de uma joalheria. As correntes de Jurandir eram todas presentes de lá.

No cortiço, respeitava a mulher de todos. Ali, também existia uma tal de Dona Dirce, uma quarentona desquitada, redonda e com fortes sinais de desgaste com o passar dos anos. Era a vizinha dele, mulata feia, que pouco se banhava e perdidamente apaixonada pelo malandro.

Jurandir, de vez em quando fazia um carinho nela, porque em troca tinha roupa lavada, passada e cheirosa. Lavava até as cuecas . O caso era totalmente secreto, ele fazia questão do sigilo. Afinal o malandro fazia aquilo por preguiça de cuidar da própria roupa.

Com seus rendimentos estava longe de possuir um automóvel. Só sabia dirigir porque trabalhou muito tempo como manobrista. Perdeu o emprego depois de flertar com a esposa de um cliente, mas não foi ruim para ele não, pelo contrário.

Ele foi embora levando o uniforme de manobrista e quando queria impressionar vestia aquela roupa e ia até o antigo emprego. Todo sábado ia ao restaurante um senhor chamado Oscar, dono de um carro esportivo, caro e lindo. Esse mesmo senhor só saia de lá no encerramento do movimento.

Ou seja, Jurandir pegava o carro como manobrista, trocava de roupa, dava suas voltas, no final da noite entregava o carro pontualmente de tanque cheio (dizia que era cortesia da casa) e ia embora sem ser percebido já que o restaurante era o mais movimentado da cidade.

Era o seu truque para alimentar o sonho de ser rico e também conseguir namorar as meninas ricas. Era bonito, cabelos e olhos castanhos, sobre a boca um bigode fino o qual passava o dedo sempre que dava alguma investida. Seu jeito fácil de falar e sedutor o classificava como um “bom de papo”.

Certo dia foi na quadra do Esportivo, clube onde sempre tinha bailes embalados aos sucessos de Demônios da Garoa. Estava com seus companheiros bebendo cerveja e dando risada. A paquera dava esperança e resultados para todos presentes.

Com o passar das horas o salão foi ficando vazio e alguns rapazes arranjaram confusão. Briga generalizada, todos foram para a delegacia, exceto Jurandir. Ao ver a policia chegar pulou o balcão do bar, pegou um avental, tirou o chapéu e olhou as prisões serem efetuadas. Voltou pra casa antes de ser reconhecido como arruaceiro.

Dentre os vizinhos de Jurandir estava o seu Raul. Seu Raul tinha trinta e seis anos, nunca sorriu nem cumprimentou alguém. Muito alto, forte e um tanto desengonçado. Saia de manhã cedo. Voltava no fim da tarde e não saia mais. Alguns diziam que tinha mulher, outros que não, a questão é que Jurandir nunca tinha visto mulher alguma.

O malandro conheceu uma menina um tempo depois. Seu nome era Maria. Ela era tudo que o malandro gostava, mas ele não era o homem que ela sonhava em casar e muito menos o que o pai dela aceitaria como genro.

O pai dela foi o primeiro que não caiu no golpe do carro do senhor Oscar, nem no ouro das correntes. Era um homem muito esperto, foi policia até ser acertado e agora era dono do Botequim do Agenor. Vivia no meio da malandragem e sabia que Jurandir tinha o perfil exato dos malandros boêmios. Assim Agenor decidiu que Jurandir só poderia visitar Maria se fizesse algo que enaltecesse sua pessoa.

Jurandir ou Jura como era chamado pelas mulheres voltou à ativa, atacava todas sem distinção e elas iam a loucura. Ele e Altair, seu melhor amigo, faziam-se de bons cristãos só para na missa de domingo conseguir ficar mais próximos das moças e marcar encontros que em sua maioria eram frustrados pelos irmãos e irmãs mais novos, enviados pelos pais para evitar que as filhas fossem seduzidas e defloradas.

Jurandir conseguiu na missa de São João uma proeza inigualável. Marcou de sair com Ana Selma, foram ao cinema e o rapaz conseguiu deflorar a garota mais bonita e desejada de todo Km 13. Ela apaixonou-se, mas não passava de mais uma fã porque ele só pensava em Maria.

Começou a se sentir desmotivado para as outras mulheres. Mantinha sim a mesma vida de malandro e boêmio, dando carinho a madame e a Dirce fedida, mas como lazer não queria mais mulheres. Na sinuca não era mais absoluto, começou a perder e o dinheiro do aluguel ficou apertado.

Cada vez mais deprimido deixou de sair de casa quando seus amigos iam atrás de mulheres. Altair veio um dia até sua casa e tentou colocar em sua cabeça que ou Jura deixava de viver como malandro e passava a trabalhar ou esquecia de uma vez Maria porque o pai dela nunca aceitaria um malandro.

Ao ouvir falar em ter que trabalhar, Jurandir suou, ficou com medo e desistiu de Maria. Vestiu sua melhor troca de roupa, Altair sentia-se feliz em ver o amigo motivado daquele jeito. Saíram, se divertiram e quando voltaram o rapaz ficou em casa embriagado.

Deitado, acordou. Ainda mantinha os olhos fechados. A cabeça doía por conta da ressaca. Ficou pensando sobre coisas cotidianas até perceber seu raciocínio ser interrompido por um choro muito baixo. Abriu os olhos como se ajudasse na percepção. O choro continuou, irritado fechou os olhos de novo até dormir, mas não antes de planejar algo.

No outro dia, olhava pela janela. Estava de pijama e viu seu Raul saindo para ir trabalhar. Calçou os chinelos e correu até a casa do vizinho. A porta estava trancada. Pensou um pouco. Foi até a quitanda próxima do cortiço. Roubou uma folha de jornal que era usada para embrulhar as frutas. Voltou, colocou a folha por baixo da porta do vizinho e com o mindinho empurrou a chave até ela cair do outro lado. Puxou a folha e pegou a chave.

Abriu a porta, passou e encostou a mesma. Vasculhou um pouco a casa, impecavelmente limpa. Olhou na cozinha, banheiro até ir ao quarto. No quarto viu uma mulher muito bonita e totalmente desconhecida.
A mulher se escondia, era a esposa de Raul e pedia para que Jurandir fosse embora. Evitava até o contato visual, apresentava muito medo. Conforme o rapaz mostrava uma postura de valente a mulher começou a conversar mais e esclarecer algumas dúvidas.

Contou que fazia mais de anos que não via o Sol, o ciúme que o marido nutria era tamanho que se o chão da casa não estivesse brilhando era porque ela perdeu tempo traindo e por isso como castigo apanhava. Tentou escapar algumas vezes, mas sempre foi encontrada, por isso desistiu de fugir. Conversaram até o fim da tarde.

Jurandir ia levantar quando a porta foi aberta de uma vez seguindo um golpe forte contra a fronte do rapaz que caiu desmaiado. Raul trancou a porta, duas voltas na fechadura. Tirou o chapéu, o paletó e a camisa. Expôs os punhos serrados, a calça segura pelo suspensório e botinha, de operário.

A dor era imensa, sentia como se tivesse bebido todas e agora a ressaca chegasse. Abriu os olhos, não estavam bons. Sua visão estava turva e sem nitidez. Já a escuta estava perfeita e demonstrava que o agressor ainda estava lá. A mulher chorava baixinho. Voltou a enxergar normalmente.

O gigante Raul estava com um cutelo na mão, sentado numa poltrona. Sua mulher pedia para que não acabasse com Jurandir, mas isso só irritava mais o marido. Levantou. O malandro, que nunca teve a coragem como virtude, deu um grito de socorro tão alto que deixou o dono da casa sem reação por alguns instantes.

O gigante retomou o raciocínio anterior, apertou o cabo do cutelo, deu dois passos e levantou o braço que empunhava a arma. Jurandir rezava e jurava que nunca mais ia ser daquele jeito. Nessa hora arrombou a porta e entrou cabo Antônio, vizinho de cortiço, com arma em punho e pedindo que Raul abaixasse o cutelo. O homem atendeu e logo depois foi preso.

Jurandir deu um suspiro longo e, saindo, falou com Deus que nunca mais ia ser daquele jeito. Não ia ser mais intrometido na vida do outros. Foi ai que viu um fotógrafo do jornal da região que passava por ali e queria cobrir o caso. Conversaram um pouco, bateram uma foto e Jura deu uma quantia ao repórter.

No outro dia, no caderno dos acontecimentos diários, a noticia em destaque era de que o corajoso Jurandir Neves, para proteger uma mulher que mal conhecia, lutou desarmado contra marido opressor e ciumento, munido de um cutelo. Tudo isso porque era um cavalheiro e um homem honrado.

Era a prova que Jurandir precisava para mostrar para a sociedade e para o pai de Maria, que tinha caráter e era digno o suficiente.


P.H. Facchini