sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Antes que a Dicotomia Invencível nos pegue.



Jantar no Ismalabares




Um casco fosco hasteado por uma vela solar octogonal reduziu o voo sônico e deslizou na elegante estrada de placas lunares. A carapaça rústica encolheu-se para as laterais e compactou-se como um leque. Surgiu o carro multitarefa da Volks.


—  Cor prata com alternância para até cinco tons, rodas inteligentes com alta capacidade de comunicação, faróis de penetração... 

 —  Faróis de penetração? Como assim, Donato?


 —  São diferentes dos carros-nave de cinco anos atrás. Estes não só iluminam, eles atravessam certas matérias e... 

 — Encosta aqui mesmo. Tem manobrista. 

 —  Coisa fina, o lugar, hein?. 

 —  Eu te disse. Reservei há mais de um mês. 

 —  E você reservou antes de saber o resultado do nosso golpe? 

 — Otimismo, cara. Otimismo e discernimento regem a vida malandra.


Abriram a porta e a compressão liberou um gás inodoro e espesso. Ao pisarem na calçada perfez-se uma holografia de garçom em um terno de corte justo.


— Boa noite, cavalheiros. Meus indicadores demonstram ascendência brasileira. Quais idiomas preferem? 

 — Só português do Brasil, carinha. Valeu!


—  Assim será. Formal ou informal, senhor? 


 —  Informal.


— Perfeito, senhor. Acompanhem-me, por favor. 


 —  E o carro, idiota?


—  O manobrista foi acionado, senhor.



Donato colocou as mãos nos bolsos da calça e seguiu seu amigo. Caminharam juntos com a figura holográfica até o pórtico hall de entrada. Uma ruiva de face lustrosa como bola de bilhar, coberta por tarjas amarelas, invertia os polos de um pequeno planeta de plástico na palma da mão, no momento em que eles entraram na recepção. Ela ergueu os olhos por cima do balcão e solicitou seus nomes.


 —  Al Mansur Ludovico Filho e Silas Soares Sodré


Bahia, codinome Silas, olhou enviesado para Donato, codinome Al Mansur, balançando a cabeça levemente em sinal positivo.


—  Qual ambientação os senhores preferem? — Perguntou a ruiva, educadamente.


 —  O que você recomenda?


—  Acontece no momento um portentoso jantar no salão China Imperial, 225 A.C.

 — Uow! Parece interessante, mocinha. Manda bala. — Concordou Bahia abrindo um sorriso.


O grandioso e ribonucléico salão imperial estava abarrotado de chineses vorazes. Camarões “sete mil barbas” eram deglutidos com emoção por falsas bocas de látex encaixadas nos rostos dos mais tímidos.



”Tonkatsu! Tonkatsu”!



O “kou tou chan kou tou chan kou tou chan” cuspido das dezenas de pessoas, ecoava diante dos leitões proteicos recém desplacentados da porca-mãe artificial. Os hashis de baobá tremelicavam, agarrando pele, gordura e carne fervente. 


 —  Eu só vou comer arroz, Donato. Só o arroz!


 —  Largue a frescura na Terra. Sente-se e peça algo substancial para nós, Silas.


Bahia suspendeu o cardápio a altura dos olhos.


 — Silas Soares Sodré é teu nome a partir de agora. Não me chame de Donato. Sou Al Mansur.


Uma pequenina e elegante moça chinesa adentrou o complexo com passos alegóricos, firmes e ritmados, junto ao som do taiko e do shamisen, ambos a acompanhando de soslaio. Cantarolou, passando sobre o rosto e por cima da cabeça embonecada as mãos de unhas pintadas com nuvens.




“Ni lao lao dao dao na ge nan sheng na me jiu le, cai qu dian xing dong ba! Dian Xing Don ba lao lao dao dao”.




Silas batucava empolgado na mesa, interferindo a melodia com seu canto de voz rasgada.


 

“Pandeiro, tamborim e marcação, tingalagatinga, lagatinga no salão”

 

“Pandeiro, tamborim e marcação, tingalagatinga, lagatinga no salão”



O burburinho cessou de imediato e todos os olhos apertados da confraternização voltaram-se aos brasileiros. Al Mansur esbofeteou com firmeza a testa de Silas. 


 —  Xing Ling, perdon! Meu amigo é maluco. Porco, alegria e camarão, perdon, perdon.



Com um sem fim de reverências, Donato apontou para o cardápio aleatoriamente como se fosse um mal entendido culinário. Bahia esfregou a testa vermelha, observando enviesado o seu público repentino. O jantar retornou ao prumo e a melodia continuou. Donato puxou o amigo pelo colarinho até ficarem nariz com nariz. 


 —  Quer tanto chamar atenção? Precisa mesmo deste humor tosco e imbecil? Você me viu rir em algum momento de algo que você disse, durante toda essa noite? 


 —  Relaxe, Donato. Essas pessoas não fazem ideia de quem seja Gang do Samba.


Donato, codinome Al Mansur, respirou pesado. Recostou-se na cadeira e baixou os olhos ao cardápio à sua frente. Impropérios aleatórios sairam sussurrados de sua boca fina. Bahia, codinome Silas, pressionou o botão que aciona a atendente holográfica.


—  Boa noite senhores. Queiram fazer seus pedidos, por favor. 


 —  Eu quero Enguia Trifásica da Mongólia e bastante arroz. 

 —  Você não ia comer somente arroz, Silas? 

 —  Vamos nos misturar com essa gente. Comer o tradicional. 

 —  Ah, larga de conversa. Moça, quero uma porção de pato laqueado.


Enquanto aguardavam o pedido, os dois assistiram sem empolgação a apresentação da garota chinesa. Ela circundava uma mesa cerimonial, decorada com cata-ventos de carbono entre as travessas fartas de especiarias. Os mais idosos erguiam taças de saquê em direção a cantora e sorriam lascivos. 


 —  Na ponta da mesa. Não, do outro lado. Olhe aquele velho, Silas.


Donato puxou do bolso uma cartela de metal perfurada, escorregou o dedo pelas fotos da face de diferentes pessoas e parou na face do velho chinês que observavam na mesa cerimonial.

 —  Sei... E o quê tem ele? 

 —  Jun Lonlon Li, magnata do azar. 

 —  Do azar? 

 —  Dos jogos de azar. Proprietário do cassino Lopan. 

 —  Na lua Café? Eu sei onde fica. Minha ex-cunhada trabalhava como prostituta no pavilhão Andrômeda. 

 —  Cyber Sexy bar? 

 —  Lá mesmo, pode apostar. 

 —  Quais são as chances de nós, os maiores trapaceiros do universo, jantarmos ao lado de tal podridão endinheirada como Lonlon? 

 —  Mas, Al, nós arriscamos nossa pele para aplicar o último golpe. Devem estar esquadrinhando metade da galáxia em busca da Dicotomia Invencível. 

 —  Eles desconhecem nossa aparência, Silas. Estamos limpos, basta não usar a manopla.


A garçonete sorriu com dentes espaçados e serviu a mesa dos trapaceiros. Duas bandejas cobertas com uma tampa em forma de um dragão prateado. 


 —  Pato laqueado para o senhor, né? 

 —  É. 

 —  Né? E o senhor, Enguia Trifásica da Mongólia, né? 

 —  Né, madame.


Al Mansur bicou com a ponta dos dedos a pele suculenta do pato, olhando para a fumegante tampa de dragão sendo manuseada pela garota. 

—  Tá que o pariu!

— ...


 —  Porra, Bahia. Porra! 

 —  Enguia Trifásica da Mongólia, né. — Confirmou a garçonete de dentes espaçados.


Os roliços trigêmeos siameses do mar saracoteavam emitindo faíscas de energia, cobertos por um perfumado molho de ervas e cubos de abacaxi caramelados.  


 — Tem que cortar a cabeça, Silas.
 —  Tem, é?


Bahia prendeu a cabeça do meio com o garfo e serrou com a faca metade do corpo. 


 —  Opa, me deixa provar essa coisa.


Al Mansur agarrou a metade cortada e a sacudiu para longe de seus dedos chamuscados. Os dois observaram a trajetória do naco elétrico até este pousar na mesa de Lonlon. A senhora mais gorda e colorida do grupo apertou com seu hashi o naco recém chegado à  mesa e o sugou com gula. Lonlon levantou uma pequena concha de saquê e todos ergueram junto suas bebidas.


—  "Raihin shokun, banzai!"


Lonlon sorveu o álcool de arroz e com um sorriso largo pôs-se em direção aos trapaceiros.

—  Ni qu kan xin de Jaspion dian ying le ma?

Silas prendeu a respiração e virou o rosto lentamente na direção do velho Lonlon.

—  Ni qu kan xin de Jaspion dian ying le ma?


Bahia soltou meio sorriso pensativo em direção ao bem trajado dono de cassino. “ Mas do quê diabo ele está falando? " —  Pensou.

—  Have you watched the new Jaspion movie?


— Ah, ele tá falando do Jaspion, Silas.


—  Perdão, amigos. Naturalmente comecei pela minha língua natal e pulei para um inglês universal. O português seria minha terceira opção, obviamente.

—  Carinha, teu português é perfeito, mas teu chinês é enrolado demais.

—  A quem devo o prazer?

—  Silas Soares Sodré, empreendedor de galáxias, no ramo de cabeamento coaxial para banheiros-esfera. E este é meu bom chapa...

—  Al Mansur Ludovico Filho, escritor de futilidades para a revista Catete Policlínico, a sua saúde é coisa séria.

—  Pois bem, — o velho chinês sentou numa das cadeiras —  desconheço tal revista e também tal função de cabeamento. Jun Lonlon Li. Cinéfilo e critico amador e... 

—  E...


— ... E dono do cassino Lopan. Claro que, cavalheiros como vocês, já devem ter feito suas apostas por lá.
—  Não, não. Odeio jogatina.

—  Eu, idem.

—  Mas gostam de cinema? Já viram o novo filme do Jaspion?

—  Jaspion 200 anos, um novo começo?

—  Sim, amigo Silas. É esta pérola que acaba de estrear.

Donato reconheceu o estalar de suas ideias. Piscou para Bahia e dirigiu a palavra a Lonlon.

—  Gostaria de pedir desculpas pelo incidente com a enguia. Este peixe asqueroso escapou ferozmente de meu garfo e voou em direção aquela delicada senhorita.


— Aquela delicada...? — Ho, ho, hi, hi, he, he, hu, hu. — Pois bem, pois bem. É minha cunhada Pin Pin. Ela amou o presente vindo do céu. Isto fez apenas com que minha alegria cobrisse também os estranhos a minha volta. Tina Lee? Sirva saquê aos meus amigos.

—  Lopan é um nome de família? — Indagou Donato, enquanto escolhia um pedaço de pato.

—  Lopan é um vilão de um filme muito antigo. Uma criatura milenar de poderes sobrenaturais.

—  Lembro-me de algo do tipo.

Donato  mastigava a carne de pato e sorria com os lábios lambuzados.

—  Silas, meu caro, mostre a manopla.


—  Quê?

—  Gostaria de mostrar nossa nova ferramenta revolucionária para dar cabo de pessoas malandras.

—  Saquê, né? — Serviu os três de supetão, a afetada garçonete.

—  Pois bem, que interessante. — Lonlon bebeu ruidosamente — Uma manopla contra malandros! Mas, por quê? Vocês têm ramos diferentes. Esperem um pouco, do quê estamos falando, afinal? Tina Lee! Saquê, mais.

—  Silas, ande logo e pegue a maldita Dicotomia Invencível!

—  Do quê você está falando, Al Mansur? — Sussurrou — Está nos entregando para o cara mais perverso do universo.

—  Relaxa, parceiro.

—  O poder do amor, o poder do amor. Ao amor, amigos!

Donato abraçou Bahia para perto de si.

—  Porra! Podemos depenar o cassino desse cara usando a Dicotomia Invencível. 


Os primos caretas do Japão, Noki e Nobu, gêmeos do sumô, incomodaram-se com a posição vulnerável de Lonlon que abusava do álcool na mesa de desconhecidos.

—  Vão nos rastrear e vamos para cana dura.


—  Isso não vai acontecer, queridão. A Dicotomia Invencível — Donato balançava a cabeça com plena satisfação — é invencível. Porra!

— O poder do amor, o poder do amor. Ao amor mais uma vez, amigos!

—  Sei... Você entrou aqui cheio de moralidades e todo discreto. Acaba de dar com a língua num apito.

—  Quantos golpes perfeitos nós executamos em todos estes anos, Bahia?

—  O poder do amor, o poder do amor. Ao amor, amigos! Conhecem o poder do amor? Sake, Tina Lee!

—  Toma aí a bagaça, Donato! Aperta logo, que, no fundo da mente, estou morrendo de curiosidade.

A Dicotomia Invencível brilhava. Donato apertou com firmeza a pequena esfera, marcada com um raio duplo no centro. Dê um micro furo partiu um jato fino e constante de água. Um mega vórtice de energia percorreu o salão.
 
—  Chá, chá, chá.


—  Chá, chá, chá

—  Chá, chá, chá

— Parece que dá certo, Bahia.

—  Chá, chá, chá.

—  Bahia? A Dicotomia te pegou? Puta merda!

—  Esquece, carinha. Estamos num ritmo maravilhoso. Chá, chá, chá!

—  Eu odeio essa melodia!

—  Chá, chá, chá. Levante os braços e venha dançar.

—  Chá, chá, chá. Rebole o bumbum, vamos animar.

A esfera na mão de Donato girou em sentido anti-horário.

—  Que tal irmos todos ao meu cassino, para uma bela partida de Chá, chá, chá?


Donato retirou a carteira de seu casaco e buscou algum trocado para pagar a conta. Duas notas saíram do bolso, secas e sem cor. Ele olhou para a nota e olhou para a comida na mesa, toda ela transformada em joias.

—  Tina Lee? Embrulha este resto para viagem, por favor.



—  Sim senhor, né!


Trapaça no Lopan



Numa cabana de localidade imprecisa no planeta Terra, Renan Renê sorvia café morno e sem açúcar, enquanto encarava o sistema de monitoramento espacial. O radar oscilava há horas em busca de sinais fora de ciclo. Todo aparato científico do local estava cuidadosamente montado para esquadrinhar o uso da Dicotomia Invencível. Renan era um perito em rastreamento de artefatos roubados, intra-terrestres e extraterrestres. Por ser o único a manusear a Dicotomia em segurança, foi logo recheado em dinheiro pelo governo Mata Galo Setentrional. 


—  Então pisque sua luz, alarme mágico. A espera me corrói. —  Suspirou, Renê.


Na tela, um golfinho apareceu, saltando as ondas do radar. O rosto de Renan Renê refletiu a luz verde esmeralda do alarme. Enfim era detectado o sinal da Dicotomia Invencível. 


—  Vamos nessa, para a glória suprema do caçador.


A cabana chacoalhou as paredes e lentamente emergiu de seu subsolo uma nave em formato de seta. Renan acionou o propulsor PI e garantiu mais uma tranquila partida ao espaço em hipermegaultravelocipededade. Termo cunhado pelo próprio, aos dezesseis anos, em uma garagem nos pampas.

Saindo do restaurante Ismalabares, Jun Lonlon Li abandonou seus convidados e tratou de aceitar a carona da dupla, Al Mansur e Silas Soares. Acompanhado também de Nobu e Noki, Jun enfrentou dificuldades para se adequar ao modesto carro multitarefa.

—  Nobu, entra primeiro. Agora vou eu e depois entra você, Noki. Ugh! Assim, isso.

—  Eu gosto de comer aveia com banana, Donato.

—  E daí, Bahia? E daí? Eu não posso dirigir com essa esfera girando na minha mão.

—  Você está molhando todo o seu carro, senhor Al Mansur.

—  Ué? Não existem mais bananas, sabia?

—  Dirige aí, Bahia. Coloca no painel o nome do cassino.

—  Está chovendo no espaço e estamos dentro do carro e está chovendo dentro do carro! Incrível!


Rangendo e soltando coices, o carro partiu em sua jornada, sob efeito da Dicotomia Invencível.

—  Bahia, eu não sei  como funciona isso. Onde eu estava com a cabeça?

—  Eu consigo ver dentro de sua alma. E você não parece um menino travesso.

—  Senhor Lonlon, eu vou depenar seu cassino. Sem problemas?

—  Meu cassino Lopan é feito de papel. Grande farsa. Grande.

—  Parece que você está bem entretido na Dicotomia.

—  Sou grande farsa. Nem chinês sou eu. Percebe?


Finalmente avistaram o Cassino Lopan, com sua espalhafatosa fachada de pérolas super desenvolvidas. Bahia manobrou o carro, enviesando-o no começo da escadaria principal da entrada. Dezenas de seguranças contornaram o veiculo. A porta do passageiro foi aberta e apenas a mão de Donato se estendeu, segurando espalmada a esfera giratória.

—  Muito boa ideia. Muito boa, de fato. Meus homens são moluscos! Não posso contratar humanos. Eles não são tão comestíveis.


Os seguranças saracotearam seus imaginários novos tentáculos, saltitando pelo chão em busca de um pouco de ar. Noki desentupiu do pequeno multitarefa da Volks e puxou com pouca delicadeza Jun Lonlon. Nobu pensou flutuar para fora do carro, deixando para trás aparentes cento e quatorze quilos a menos.

—  Muito bem desgraçados. Meu carro está um caco. Vamos logo acabar com a presepada. Bahia, por favor, desliga o carro e cai fora. 


 —  Faróis de penetração! Uau! Olha só como é lá dentro.



Donato deu a volta e carregou seu amigo pelo ombro até, por fim, seguir em uma fila indiana, cassino adentro. 


—  Tá que o pariu! 

 —  Porra, Bahia. Porra!



O trovão ecoou nos três panorâmicos patamares do local. As muralhas internas, incrustadas com Jade, brilhavam com o reflexo das mesas acarpetadas, onde ligeiros crupiês com capacetes de astronauta dedilhavam as cartas. A música, incidente e instrumental, acompanhava, tal qual em um filme, a movimentação dos clientes engomados. Diversas estirpes de pontos distintos no universo cruzavam-se. Com elegância, a Dama Patrona, do Distrito Pantomima, dividia a sorte na roleta gigante, ao lado de sua arqui-inimiga, Genoveva Blaus, Senhora Fina da Vila Belém-Belém. 

 
Circenses multifacetados, numa versão cubista, saltavam de um lado ao outro, por cima da jogatina, costurados entre si e assim, ressaltando o estranho traço deslocado de seus corpos. Risadas histéricas, gritos de vitória e derrota, iam e vinham, como a  ressaca do mar Terráqueo. Donato e Bahia retorciam o pescoço, boquiabertos com a atmosfera. Bahia ajoelhou no piso platinado e deslizou como uma cobra em direção ao bar. Donato percebeu então, que sobre tamanha excentricidade, a Dicotomia Invencível em suas mãos, ainda estava por começar de verdade. Seus pensamentos focaram-se apenas em tirar o máximo de proveito disso. 


Uma massa disforme e rosada escorregou pela traseira da Nave Seta. Era Renan, derretido pela hipermegaultravelocipededade. Murmurava cantos revolucionários e blasfemava a esmo, entusiasmado. O pino central da nave vibrou em anúncio à chegada ao destino e, imediatamente, a gravidade interna sofreu um refluxo que colocou a tudo em ordem, inclusive o corpo de Renan.


— Está na hora de ligar o Tempo Primordial. 


O Tempo Primordial



O reflexo das polidas lentes dos arcaicos óculos de Renan refletiram o mecanismo complexo chamado Tempo Primordial. Ele desenrolou o veludo do objeto, similar a uma caneta, mas de espessura muito fina e repleta de minúsculas roldanas dentadas.

— Agora é só procurar.





Não poderia ser diferente. O cassino Lopan estava às avessas. Donato agarrava o que podia nas mesas de jogatina. As pessoas lhe entregavam todos os valores. Crupiês o chamavam de lixeiro e pediam para que recolhesse os restos fedidos, que eram exatamente as cédulas coloridas e cobiçadas. Jun Lonlon Li surgiu no centro do salão chamando a atenção de todos.


— É um prazer recebê-los em meu banheiro. Apesar de inusitado, este é um local sagrado e de bom grado. Selecionei estas belas damas ao meu lado para ofertarem o delicioso charuto chinês. 


Noki deu um passo à frente e apertou a mão espalmada de uma das acompanhantes. Jun ergueu metade de sua túnica e retirou um cutelo. Donato interrompeu por um instante o recolhimento da grana. A Dicotomia Invencível queimava com furor a palma de sua mão. Os giros aumentaram a velocidade e o filete de água molhou boa parte do corpo do trapaceiro.

— Noki, sirva meu dileto amigo Silas Soares Sodré!



Bahia serpenteou o corpo molenga com um sorriso cínico ao lado de Jun Lonlon Li. O brutamontes japonês desceu o cutelo nos dedos magros da moça. Ela sorriu, extremamente satisfeita. Bahia apertou o indicador vibrante entre os dentes.

— Tem fogo aí, meu camaradinha? 



Mais do quê aplausos, a oferta de charutos de dedo, tão frescos, alvoroçou as pessoas. Oportunamente, Renan Renê realizou uma entrada espalhafatosa, pulando por sobre uma das roletas.



— Admirável mundo novo! Eis que estão todos sobre efeito da portentosa e traiçoeira confusão de costumes e crenças. Invenção de Sir Jonas Temalteki IV. A Dicotomia Invencível!



Jun Lonlon baforou um dedão incandescente.

— Como é que é?



Clink, Clink, Clink

Ferro batendo em ferro, há uma distância longínqua, era o som que embalava os ouvidos entupidos do público entorpecido. Renan caminhou em direção a Dicotomia. Aos olhos alheios, sobre efeito do trunfo de Donato e Bahia, este homem de uniforme verde era o próprio ceifador de almas. Renan, espalhafatoso, estapeava as pranchas dos tablados de jogatina. As fichas do cassino saiam aos ares. O Tempo Primordial alterava a percepção das pessoas e tudo se movia com extrema lentidão, exceto o dínamo Renê.


— A Dicotomia Invencível não pode ser derrotada, mas pode ser desacelerada e então desligada. Com sua licença, caro bandido.


O soco de Renê acertou o queixo de Donato, alavancando-o para cima de uma pilha de copos de cristal. A Dicotomia Invencível rodopiou no ar e foi golpeada certeiramente em seu centro pela caneta do Tempo Primordial. Um novo vértice de energia inflou a arquitetura do Lopan.


— Está feito!


— Oras, pitombas! Tentáculos de polvo! Asas de pombas! Quero todos vocês fora do meu cassino... Agora!

— Acorda, Bahia! Aquele desgraçado furou nosso plano. Acabou-se!

— Carinha, estava numa viagem muito louca. Me ajuda aqui, vamos nessa. Tá firmeza. Tem grana aí?

— O lixeiro aqui, arrecadou o necessário. Cospe esse dedo nojento e vamos rapar fora.


No alvoroço para abandonar o palco da confusão, escapuliram Donato e Bahia, fritando a vela solar octogonal do carro multitarefa da Volks.


— Missão cumprida! Digitando coordenadas para retorno imediato ao planeta Terra.


— Saquê, Tina Lee! Tina Lee? Onde está você, Tina Lee?


A nave seta entrou em sua bizarra super velocidade. Renan Renê descansava em sua poltrona de comando mental, rosqueando o Tempo Primordial no centro da Dicotomia Invencível. Estava contente com o sucesso da missão, mas ao mesmo tempo lamentava a fuga dos ladrões. Mal percebeu quando ativou as duas peças grudadas, ao mesmo tempo.



— Mas por que diabos eu estou sem as calças?


No bolso de sua calça havia uma pequena medalha de hipnose-magnetizadora e, agora que o Tempo Primordial e a Dicotomia Invencível haviam sido acionados juntos, apenas aquela peça poderia normalizar o universo.

Enquanto isso, num Duplo Dormitório Pseudo Amador, no meio do Rio Amazonas:


— Bahia, saca só essa medalhinha que eu descolei!

...



>fin?<

2 comentários:

  1. Eu ainda me lembro do tópico original, no Orkut, onde você publicou essa história... rs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Finalmente eu o revisei e resgatei as figuras dos personagens, também alterei o tempo verbal. Agora sim, vive novamente! Obrigado pela lembrança, Eduardo! Abrçs

      Excluir