Cansada de esperar a passeata contornar o quarteirão, Croma
Silvana levantou-se da escada. A temporada de festas em honra de Santo Pardinho
do Abaluê estava já em seu penúltimo dia e a caminhada tradicional de "Um Milhão de Passos" levou toda a população da cidade de Pardo até o
ponto mais alto da região. Croma Silvana girava o dedão pelo gatilho de
sua câmera e batia fotos a esmo dos muitos fiéis.
— Mãe de Deus. Ó Mãe de Deus. Ó Abaluê do Pardinho. Salve a fome do povo.
Dos gritos do negro esquálido, parte dos devotos fizeram meia lua em volta do desvairado. Croma ergueu a câmera no buraco de corpos que conseguiu atravessar e saiu disparando. O negro tremeu o corpo e saracoteou como um possesso, pisava pé ante pé no contorno cada vez mais espaçado das pessoas.
— Ó Santo Pardinho. Dá-me um bocado de comida. Eu me farto com um pouquinho.
A multidão debandou cascando de rir. Croma Silvana agachou na frente do homem e perguntou seu nome.
— Seráfico Bonfim. Trinta e oito de vida. Vinte de fome, pois foi com dezoito que larguei mão da boa sorte e sofri a passagem da fé. Dez anos de devoção. Foi quando encontrei o caminho da boa marcha de Santo Pardinho. Cinco anos de chão frio nas noites deste interior perdido do mundo de Deus. Três minutos do tempo que me humilhou o populacho e o agora, em que chegou você com teu cabelo de ouro.
Ela encantou-se com as palavras populares de Seráfico e seu discursar proeminente. Percebeu logo a importância folclórica de tal personagem.
— E diga, tão sofrido projeto, por que deste forte grito em sua fala?
— Moça bela, parece alheia as minhas palavras, apesar de ter se aproximado gentilmente. Por acaso faltou clareza no meu anseio de fome? Pois é fome exatamente o meu protesto.
— Eu entendo, Seráfico. Seu desempenho teatral foi um encanto. Penso agora numa ponta de destino, pois, ao meu passo curioso, te vi surgir neste canto como uma personagem de fábula.
Croma riu da estranha figura e girou o gatilho novamente, disparando novas fotos. Ele sorriu e ergueu-se de um pulo.
— E há destino mais eficiente do que gritar clamores no momento em que mais se apinha gente nessa romaria? Aproveito a oportunidade. Você mesmo, loura, viu que logo riram de meus modos.
— Vamos comigo até o fim da pequena jornada religiosa e de lá procuramos juntos algo para jantar. Que tal?
— Claro que sim! Aceito. Mas se pensa que eu paro de pé, como uma vara de pau, sem nem ao menos o café...
— Uma queijadinha na Dona Vera e podemos ir.
E foi-se Seráfico seguido por Croma. Ele abriu caminho com facilidade pelos devotos, que evitavam a todo custo o seu contato. Quarenta passos contados até a queijadinha e alguns segundos para engolir três bolinhos.
— Então, ainda me quer até o jantar?
— Não sei, não sei não, senhorzinho. Se for boa pessoa, podemos chegar lá.
Ele espremeu os olhos e limpou os dedos engordurados na calça puída.
— Oxalá! Saiba que sou de paz.
E as horas do dia foram preenchidas por diversas atividades religiosas, supersticiosas e até mesmo esdrúxulas (quiçá todas fossem). No clic de sua fotografia, Croma Silvana registrou o máximo possível.
Um septuagenário deitou-se atrás da carroça de bois e, segurando firmemente no laço que sobrava da traseira, foi-se arrastado, comendo poeira e cantando com a multidão.
Certa senhora, pele morena estilhaçada de sol, empurrava com esforço uma carriola com seus quatro filhos adultos.
Um matuto esvaziara a garrafa de alambique em sua esposa. E a rodeava em uma dança complicada de bate-pés.
O padre chibatava três pupilos, bem a frente de todos os devotos. Um dos pupilos carregava Santa Madalena de Dias Plenos em gesso.
Outro que chibatava, era o suado dono de burro. Louco por continuar a caminhada, paralelo ao santo da festividade.
Quatro e meia da tarde e o íngreme percurso já castigou o que pôde do povo crédulo. Pararam os padres, parou o bispo. Estacionou o Santo Pardinho.
— Sem a oração, nunca poderá uma alma produzir bons frutos. Poderosos somos nós que aqui, a partir de agora, rezaremos — Declamou em bom tom, um dos muitos religiosos ali presentes.
“Mimimimimimi
Ó santo Pardinho perdoe-nos,
Mimimimimimimi
somos dignos. Ó Abaluê.
Mimimimimimimi
Mimimimimimimi
Na prata da casa.
Mimimimimimimi
Proteja-nos!
Mimimimimimimi
Misericórdia.
Mimimimimimimi
Estaremos gratos.
Mimimimimimimi.
Amém!”.
Croma não rezou o “Mimimi”, tampouco Seráfico.
— Que estranho burburinho! Nunca ouvi nada igual.
— Loura... essa coisa sempre me causa arrepios. Até da pontada no peito.
— Mãe de Deus. Ó Mãe de Deus. Ó Abaluê do Pardinho. Salve a fome do povo.
Dos gritos do negro esquálido, parte dos devotos fizeram meia lua em volta do desvairado. Croma ergueu a câmera no buraco de corpos que conseguiu atravessar e saiu disparando. O negro tremeu o corpo e saracoteou como um possesso, pisava pé ante pé no contorno cada vez mais espaçado das pessoas.
— Ó Santo Pardinho. Dá-me um bocado de comida. Eu me farto com um pouquinho.
A multidão debandou cascando de rir. Croma Silvana agachou na frente do homem e perguntou seu nome.
— Seráfico Bonfim. Trinta e oito de vida. Vinte de fome, pois foi com dezoito que larguei mão da boa sorte e sofri a passagem da fé. Dez anos de devoção. Foi quando encontrei o caminho da boa marcha de Santo Pardinho. Cinco anos de chão frio nas noites deste interior perdido do mundo de Deus. Três minutos do tempo que me humilhou o populacho e o agora, em que chegou você com teu cabelo de ouro.
Ela encantou-se com as palavras populares de Seráfico e seu discursar proeminente. Percebeu logo a importância folclórica de tal personagem.
— E diga, tão sofrido projeto, por que deste forte grito em sua fala?
— Moça bela, parece alheia as minhas palavras, apesar de ter se aproximado gentilmente. Por acaso faltou clareza no meu anseio de fome? Pois é fome exatamente o meu protesto.
— Eu entendo, Seráfico. Seu desempenho teatral foi um encanto. Penso agora numa ponta de destino, pois, ao meu passo curioso, te vi surgir neste canto como uma personagem de fábula.
Croma riu da estranha figura e girou o gatilho novamente, disparando novas fotos. Ele sorriu e ergueu-se de um pulo.
— E há destino mais eficiente do que gritar clamores no momento em que mais se apinha gente nessa romaria? Aproveito a oportunidade. Você mesmo, loura, viu que logo riram de meus modos.
— Vamos comigo até o fim da pequena jornada religiosa e de lá procuramos juntos algo para jantar. Que tal?
— Claro que sim! Aceito. Mas se pensa que eu paro de pé, como uma vara de pau, sem nem ao menos o café...
— Uma queijadinha na Dona Vera e podemos ir.
E foi-se Seráfico seguido por Croma. Ele abriu caminho com facilidade pelos devotos, que evitavam a todo custo o seu contato. Quarenta passos contados até a queijadinha e alguns segundos para engolir três bolinhos.
— Então, ainda me quer até o jantar?
— Não sei, não sei não, senhorzinho. Se for boa pessoa, podemos chegar lá.
Ele espremeu os olhos e limpou os dedos engordurados na calça puída.
— Oxalá! Saiba que sou de paz.
E as horas do dia foram preenchidas por diversas atividades religiosas, supersticiosas e até mesmo esdrúxulas (quiçá todas fossem). No clic de sua fotografia, Croma Silvana registrou o máximo possível.
Um septuagenário deitou-se atrás da carroça de bois e, segurando firmemente no laço que sobrava da traseira, foi-se arrastado, comendo poeira e cantando com a multidão.
Certa senhora, pele morena estilhaçada de sol, empurrava com esforço uma carriola com seus quatro filhos adultos.
Um matuto esvaziara a garrafa de alambique em sua esposa. E a rodeava em uma dança complicada de bate-pés.
O padre chibatava três pupilos, bem a frente de todos os devotos. Um dos pupilos carregava Santa Madalena de Dias Plenos em gesso.
Outro que chibatava, era o suado dono de burro. Louco por continuar a caminhada, paralelo ao santo da festividade.
Quatro e meia da tarde e o íngreme percurso já castigou o que pôde do povo crédulo. Pararam os padres, parou o bispo. Estacionou o Santo Pardinho.
— Sem a oração, nunca poderá uma alma produzir bons frutos. Poderosos somos nós que aqui, a partir de agora, rezaremos — Declamou em bom tom, um dos muitos religiosos ali presentes.
“Mimimimimimi
Ó santo Pardinho perdoe-nos,
Mimimimimimimi
somos dignos. Ó Abaluê.
Mimimimimimimi
Mimimimimimimi
Na prata da casa.
Mimimimimimimi
Proteja-nos!
Mimimimimimimi
Misericórdia.
Mimimimimimimi
Estaremos gratos.
Mimimimimimimi.
Amém!”.
Croma não rezou o “Mimimi”, tampouco Seráfico.
— Que estranho burburinho! Nunca ouvi nada igual.
— Loura... essa coisa sempre me causa arrepios. Até da pontada no peito.
— Moro aqui apenas há poucos meses, Seráfico. Estou absorvendo essa cultura.
Um rapaz muito gordo gritou, do alto do cesto em que carregava a imagem sagrada principal da caminhada. Abrindo os braços, mostrando as marcas de suor, ele acenou para todos os lados.
— FALTAM QUINZE PARA AS SEIS! — Gritou como berrante o rapaz gordo no cesto.
Seráfico apertou a mão direita de Croma e a puxou com firmeza.
— Vem comigo, pois a coisa vai explodir!— Que vai o quê? Se-Seráfico, o que ocorre?
A multidão disparou desvairada, em risos e choros. Gritos loucos, num corre ladeira. A poeira que levantou, cobriu os topos calvos e as cabeleiras. Era corrida e tossida. Croma e seu amigo tropicavam de lado em cata cavaco, esbarrando em muita gente com medo, até debandarem de bunda em um trecho de mato. Também estavam descendo, mas no lado contrario do morro.
O vento balançava os arbustos e filetes de um sol vermelho desapareciam no horizonte. Acima da terra, as estrelas começavam a se interpor no céu azul escuro. Duas figuras assistiam o final do dia e escutavam ao longe a turba, que havia partido em desespero.
— Seráfico? O que aconteceu que fez as pessoas correrem como se fugissem do Diabo?
— É assim que sempre foi. Assim o é. Como fez São Pardinho do Abaluê! Deus lhe enviou um sinal. Às seis da tarde, seu estômago roncou e uma fome que não conhecia fim o arrebatou. O Santo negou as ofertas do Diabo, que o tentava com perfumadas especiarias e delicados bocados, para correr em direção ao seu lar. Lá, ele se refestelou num grande banquete.
— Uia! E é por isso que correram?
— Quem faz o trajeto e permanece aqui, como nós, no relento após as seis horas da tarde... É enganado pelas artimanhas do Diabo.
— Então lascou-se pra nós, homem.
— Credo em cruz, loura!
Seráfico cruzou o “Pai nosso” no peito.
— O que lhe passou na cabeça para não sair correndo, Bonfim?
— Perderia a senhora de vista. Tu não viste a poeira que desgraçou toda a vista? E, além do mais, pela fé ou pela crendice do povo... Fico EU mais o MEU jantar!
Croma corou as maçãs do rosto, sorrindo para o esquálido homem. Os dois puseram-se de pé e bateram o pó do corpo. Terminaram a descida guiando-se pela luz opaca da lamparina de uma casebre de paredes amareladas. Finalmente na entrada, um bode com três patas os recepcionara com olhar perdido enquanto fungava uma tigela de água. Três moscas estilingavam uma galinha branca e um gato cinza sem o rabo rolava pelas tábuas do solado. Croma e Seráfico avançaram exaustos e bateram na porta, que fora prontamente aberta.
A loura bateu uma foto com flash assim que o vulto esgueirou a cabeça para fora. Um homem calvo e de nariz filado fechou os olhos e os espremeu com o polegar. Croma gargalhou e Seráfico permaneceu imóvel e inexpressivo.
— Desculpe-me senhor. Ai, ai, ai. Sou fotógrafa e passo por essas bandas para tirar fotos espontâneas. Eu sei que nem de longe você esta acostumado com a luz de uma legitima clicada.
O homem, mais alto que a porta do casebre, a mediu de cima a baixo e, com um sorriso de dentes amarelos, a respondeu com voz doce:
— Não sei, jovem bonita, se entendo suas palavras. No mais, convido-a para entrar. Se está vindo da procissão, digo que chega perfeitamente atrasada para os deveres.
Seráfico fez menção de puxar Croma para a direção oposta a da casa. Ela desvencilhou-se da trêmula mão e entrou sem cerimônias.
— Vem Seráfico... Vamos conhecer.
— Vem Seráfico! — Repetiu o anfitrião, agitando seu avental vermelho. — Vamos nos conhecer.
Cochichou o amedrontado Seráfico no pé do ouvido da loura:
— É muito irresponsável entrar numa casa erma de um estranho, não acha não?
Ela retorquiu também no cochicho:
— Muito arriscado, sim, pois aqui ninguém sabe quem é quem. Ele está na mesma situação que nós!
— Onde estamos, senhorita?
— Ah! Estamos no sentido oposto da cidade! Alias, me chamo Croma Silvana e este é Seráfico
Bonfim.
O homem puxou duas cadeiras e os fez sentar. Quebrou o gelo com risadas e perguntas corriqueiras. Fez-se de assunto e indagou sobre novas histórias. Ficou-se sabendo que seu nome era Montalbano e vinha de uma cidade afastada do outro lado do rio.
— Bom, é sempre um prazer receber visitas. Como hoje calhou de ser um dia religioso, estava eu a preparar um jantar de devoção.
Seráfico finalmente ergueu a cabeça com sorriso pleno e animado.
— Quanta honra participar de tão digna refeição. Espero estar apto a provar da sua culinária, Monsenhor Montalbano!
Os dentes amarelos riram de baterem-se uns aos outros.
— Ora, ora, Seráfico... Há muito não me nomeavam por Monsenhor. Digo a vocês que tenho um forno recheado das mais deliciosas tentações.
Croma e Seráfico entreolharam-se.
— E o que seriam essas guloseimas? — Perguntou Croma enquanto calibrava sua máquina fotográfica.
O homem puxou duas cadeiras e os fez sentar. Quebrou o gelo com risadas e perguntas corriqueiras. Fez-se de assunto e indagou sobre novas histórias. Ficou-se sabendo que seu nome era Montalbano e vinha de uma cidade afastada do outro lado do rio.
— Bom, é sempre um prazer receber visitas. Como hoje calhou de ser um dia religioso, estava eu a preparar um jantar de devoção.
Seráfico finalmente ergueu a cabeça com sorriso pleno e animado.
— Quanta honra participar de tão digna refeição. Espero estar apto a provar da sua culinária, Monsenhor Montalbano!
Os dentes amarelos riram de baterem-se uns aos outros.
— Ora, ora, Seráfico... Há muito não me nomeavam por Monsenhor. Digo a vocês que tenho um forno recheado das mais deliciosas tentações.
Croma e Seráfico entreolharam-se.
— E o que seriam essas guloseimas? — Perguntou Croma enquanto calibrava sua máquina fotográfica.
— Diversos traços comestíveis. Cor sim, cor não. Vocês ainda não sabem, mas, no baile dos quadrados, lhes sirvo qualquer coisa em xadrez. Hoje, havia eu decidido degustar uma suculenta carne de bode. Trançada e riscada a faca. Faca amolada na lua dos chorões! Magníficas e tristonhas arvores do fim do mundo.
— Qual o quê? Bode? Este que tem três pernas? — Apontou Seráfico em direção a porta cerrada.
Pela única janela da cozinha apertada e desarrumada, incidiu um facho de luz vermelha. Por um momento, os três ficaram de cor sanguinolenta e as sombras dos poucos objetos do recinto inclinaram-se, umas sobre as outras. Cada pequeno quadrado de luz que era refletido parecia grudar na pele de todos e este mosaico cerceou toda a pequenez daquilo tudo.
— Olhem ali, olhem! — Bradou Montalbano. — O sol voltou para uma última espiada em nossas fuças.
Croma assustou-se com um fio de luz que espocou nas panelas penduradas sobre a pia e ergueu instintivamente sua câmera. O fogão enferrujado passou a ranger, arrastando pra frente e pra trás sua lataria enferrujada. A porta do forno abriu e fechou diversas vezes cuspindo uma fumaça de aroma delicioso.
— O forno! Olhe o forno, loura! Está se movendo... Está gritando! — Bradou Seráfico jogando-se por debaixo da mesa.
Do teto, serpentearam tripas de linguiças curadas que se retorciam de um lado a outro. Montalbano pulou sobre a mesa. Com as mãos na cintura, ele gargalhava sonoramente. A cabana começou a rodar lentamente como um carrossel e, tal qual um caleidoscópio, as cores do ambiente alternavam-se e partiam-se em pequenos quadrados. Croma Silvana clicava a esmo, admirada com os eventos, sedenta por fotos.
— Santo Abaluê do Pardinho, proteja-me de todo o mal. Resgata minha alma e me tira deste mau bocado.
— Você é meu bode, negro Seráfico. — O anfitrião sapateou. — Já esqueceu de sua pena da romaria passada? Você que ousou vagar após as seis, blasfemando! Rindo do diabo! Passando fome! Lembra de como fui generoso contigo? E de como lhe ofereci do bom e do melhor?
E Seráfico levou as duas mãos a cabeça, chorando.
— Eu tinha fome... Fome!
Croma Silvana, pela primeira vez naquele dia, sentiu medo. de costas, alheia em participar daquele quadro, foi pé atrás de pé, até encostar as costas na porta da entrada.
Montalbano passou a expelir fumaça das narinas e seus olhos borbulhavam labaredas. As botinas estouraram e delas saíram pequenas cabeças enrugadas e disformes; e das pequenas cabeças escorregaram línguas bifurcadas; e das línguas bifurcadas brotaram olhos; e dos olhos abriram-se bocas; e das bocas saltaram batatas cozidas; e do vapor das batatas cozidas refletiram-se as figuras de Seráfico e do Diabo Montalbano. No vapor vítreo das silhuetas, Croma petrificou-se, assistindo o empalamento de seu amigo.
— Acho que já chega, não chega, minha gente? — Ela balbuciou.
O Seráfico de carne e osso rezava todos os cânticos que conhecia, ajoelhado no chão. Sua boca tapou-se então com uma grande maçã. Croma gritou:
— Corre homem de Deus. Salva tua pele.
Ela abriu a porta com força e o bode de três pernas voou em seu peito, derrubando-a sobre a mesa. A fraca madeira desabou. Ficaram estendidos e desmaiados, Seráfico e Croma. Montalbano, em sua forma horrenda, permaneceu a flutuar.
Croma acordou desorientada, ainda no chão. A primeira reação foi apertar a câmera envolta de seu pescoço. Olhou para frente e observou com desconforto Seráfico retorcido numa assadeira imensa. O gato cinza sem rabo, ereto, com a altura de um homem comum, pincelava melado no corpo nu daquele pobre faminto. Croma bateu uma foto e o gato esgoelou um miado agudo em sua direção. Montalbano, em sua aparência normal, debruçou-se surgido das sombras sobre a cabeça de Croma e assoprou gentilmente seu rosto. A loura foi arrastada porta a fora pelo sopro e continuou assoprada no embalo, morro acima. A cabana encolheu e entrou por terra, extinguindo-se por último a lamparina.
Suja dos pés a cabeça e toda arranhada por espinheiras santas da mata, Croma Silvana andou aos tropeços até o centro da cidadela de Pardo. Amanhecia no vilarejo e os pequenos comércios abriam suas portas. A encardida garota sentou-se na mesa do mini mercado e pediu uma cerveja. Logo o dono do local puxou assunto e também seu ajudante fez gracejos sobre o pedido matinal. Croma narrou os fatos que marcaram sua noite fantástica, o casebre no meio do nada, o anfitrião demoníaco, o jantar quadriculado e seu amigo Seráfico; cuja pessoa, ninguém nas paragens nunca ouvirá falar. Poucos dias depois, revelou suas fotos, muitas belas e coloridas. Infelizmente, após as seis horas, todas as imagens tiradas, eram nada mais que hachuras e um vulto borrado.
GIMENEZ, Croma Silvana. Novas Lendas do Brasil – Relatos Encantados Encontrados. São Paulo: Ed. Cipó ; 2008
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