Sua mão perscrutada
de veias, sob a pele fina e enrugada, apóia a cabeça, deixando os
cabelos sebosos e brancos caírem entre os dedos de unhas cumpridas e
trincadas. Um fedor incrusta no vidro da janela, cerrada há um quarto de
século. O único ruído é o crepitar da madeira apodrecida, esmorecendo
no fogo que aquece a caldeira enferrujada. A cada fio tecido,
vagarosamente de um lado a outro pela aranha, faz-se o tempo de cair um
ou dois galhos pela chaminé, que rolam direto as chamas. Os pés
descalços na pedra áspera estão envoltos pelo musgo modorrento que
avança já à flacidez da perna. Ratazanas de olhos inchados contorcem os
corpos na cama de palha e poeira, sem chamar atenção da velha mulher na
cadeira de pano. A respiração fraca pulsa o tórax de ossos saltados,
levando pelo ar a colônia de ácaros, como fractais refletidos na baixa
luz das labaredas. Os olhos, amarelos e sem brilho, derretem
viscosamente apontados para a borda descosturada do longo vestido negro.
Nesta veste recai uma camada grossa de limo, onde baratas traçam
contornos e se reproduzem.
Batidas
repetidas ressoam na porta da frente. As dobradiças rústicas cedem ao
oitavo murro e aquela grande e grossa tábua desaba ao chão. O rude
empreiteiro, louro e comprido, espia o interior do pequeno chalé. A luz
opaca da cabana encontra os olhos do homem.
- Com licença... Mil perdões...
O empreiteiro retira seu capacete de segurança ao notar o pequeno corpo diante do fogo.
- Com licença... Senhora? Bom dia. Desculpe pela porta. Não quis assustar.
A caldeira
borbulha. Os ratos fogem pela porta atravessada ao chão, assustam o
homem. A velha mulher permanece num torpor rígido.
- Senhora, se
não for incômodo, peço sua atenção. Sou da Construtora “Prisma” e vim
lhe informar da futura construção de uma rodovia que irá dar acesso
entre a cidade de Vale Seco e Vale Grande, neste exato trajeto e com
certeza temos uma boa proposta. Afinal é a única casa em quilômetros de
mata. Senhora? Está tudo bem? Senhora?
O empreiteiro
aproxima-se da velha e seu corpo esfria e seu pêlo eriça. Na aba da
sombra, que deita sobre o rosto da velha mulher, uma boca envolta por
hachuras e pêlos quebradiços abre-se com um ranger contundente:
- Morto de desgosto. Morto. Foi o morto que lhe trouxe. Viajou de desgosto. Morto. Pois me falta um último ingrediente.
A rouquidão
perpassa a boca apodrecida relampejando por todo o pequeno recinto. O
esguio empreiteiro perde o equilíbrio do corpo. Um medo repentino lhe
assalta, aflorando uma repulsa extrema e irracional daquela coisa velha,
sentada disforme a sua frente. Sua perna trêmula retorna dois passos em
direção a luz que preenche o limiar do vão, onde antes se erguia a
porta. Com pouca flexibilidade, ele engancha o calcanhar na grossa
madeira que havia derrubado e cai com um baque seco de costas.
- Morto, morto. Enfim o fim. Ceifou o corpo. Foi o morto que lhe trouxe.
A velha
desgruda a mão da face coagulada. Ergue-se estralando todos os ossos,
caminhando vagarosamente. O musgo de seu pé marca os passos que ecoam um
barulho gelatinoso. Ajoelha-se diante do homem inerte. Roça as unhas
com força na camisa, estourando os botões que prendem o tecido.
Atordoado, ele ergue a cabeça e o sangue começa a verter do nariz. Sua
visão turva o faz estirar a nuca novamente ao chão em um torpor. A velha
enlaça seus dedos finos no galho podre que rola pelo chão. Salivando
com um odor acre, ela tomba sua face ao peito do homem e afunda a ponta
do toco, repleto de farpas, na barriga tenra. O empreiteiro, em
desespero, resfolega um gemido ao sentir sua carne formigar.
- Quarenta anos eu espero. Só falta um ingrediente.
A velha faz um
corte do umbigo ao peito do empreiteiro, rasgando a pele com as mãos,
espalhando o sangue escuro e encorpado por todo o piso. Com uma força
demoníaca, diante das veias, das tripas, ossos, músculos e órgãos, ela
revira tudo com os dedos. O homem perde os sentidos.
As
corujas pousam como uma mortalha na borda do teto. O empreiteiro
desperta ofegante no chalé. A noite vaza porta adentro. Ele desaba a
chorar, dominado pelo medo e pela dor, amortecida e tenaz, que sobe em
vagalhões por sua espinha. Ele levanta de súbito, apoiando as mãos na
parede de teias. Seu peito e sua barriga estão rudemente costurados por
um pedaço longo de arame descascado. Ainda assim o sangue verte em fios
desalinhados por toda a pele arranhada. A luz do fogo esquenta a
caldeira e traça os contornos da velha. Sentada na mesma posição de
quando ele havia entrado. Como uma estátua amaldiçoada. A mão apoiando a
cabeça, o longo cabelo caído pelo corpo, o limo, as baratas em sua
rotina, no velho vestido abarrotado, os olhos amarelos semicerrados, a
unha trincada, o musgo dos pés descalços no chão de pedra. E entre os
lábios o balbuciar fraco:
- O morto não trouxe... O morto não trouxe... O morto não trouxe...
O empreiteiro
parte como um ensandecido pela floresta, batendo dente com dente, com o
pulmão ardendo, as veias do pescoço serpenteando a pele. Sem olhar para
trás, debulha-se em lágrimas. Ao longe avista lanternas. Vozes clamando
seu nome. Cai nos braços de dois homens. Desmaia. Fosse o próprio diabo
vasculhando seu corpo, nada encontrou, senão sangue.
Nos
dias que passaram, a pequena casa foi abraçada novamente pela densa
mata e o jovem empreiteiro tombou enfermo, sem poder definir seu
aterrorizante encontro. E a velha bruxa retorna a sua espera, imóvel e
pungente, pois ainda lhe falta um último ingrediente.
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