quinta-feira, 3 de julho de 2014

O último ingrediente

Sua mão perscrutada de veias, sob a pele fina e enrugada, apóia a cabeça, deixando os cabelos sebosos e brancos caírem entre os dedos de unhas cumpridas e trincadas. Um fedor incrusta no vidro da janela, cerrada há um quarto de século. O único ruído é o crepitar da madeira apodrecida, esmorecendo no fogo que aquece a caldeira enferrujada. A cada fio tecido, vagarosamente de um lado a outro pela aranha, faz-se o tempo de cair um ou dois galhos pela chaminé, que rolam direto as chamas. Os pés descalços na pedra áspera estão envoltos pelo musgo modorrento que avança já à flacidez da perna. Ratazanas de olhos inchados contorcem os corpos na cama de palha e poeira, sem chamar atenção da velha mulher na cadeira de pano. A respiração fraca pulsa o tórax de ossos saltados, levando pelo ar a colônia de ácaros, como fractais refletidos na baixa luz das labaredas. Os olhos, amarelos e sem brilho, derretem viscosamente apontados para a borda descosturada do longo vestido negro. Nesta veste recai uma camada grossa de limo, onde baratas traçam contornos e se reproduzem.
 
Batidas repetidas ressoam na porta da frente. As dobradiças rústicas cedem ao oitavo murro e aquela grande e grossa tábua desaba ao chão. O rude empreiteiro, louro e comprido, espia o interior do pequeno chalé. A luz opaca da cabana encontra os olhos do homem.

- Com licença... Mil perdões...

O empreiteiro retira seu capacete de segurança ao notar o pequeno corpo diante do fogo.

- Com licença... Senhora? Bom dia. Desculpe pela porta. Não quis assustar.

A caldeira borbulha. Os ratos fogem pela porta atravessada ao chão, assustam o homem. A velha mulher permanece num torpor rígido.

- Senhora, se não for incômodo, peço sua atenção. Sou da Construtora “Prisma” e vim lhe informar da futura construção de uma rodovia que irá dar acesso entre a cidade de Vale Seco e Vale Grande, neste exato trajeto e com certeza temos uma boa proposta. Afinal é a única casa em quilômetros de mata. Senhora? Está tudo bem? Senhora?

O empreiteiro aproxima-se da velha e seu corpo esfria e seu pêlo eriça. Na aba da sombra, que deita sobre o rosto da velha mulher, uma boca envolta por hachuras e pêlos quebradiços abre-se com um ranger contundente:

- Morto de desgosto. Morto. Foi o morto que lhe trouxe. Viajou de desgosto. Morto. Pois me falta um último ingrediente.

A rouquidão perpassa a boca apodrecida relampejando por todo o pequeno recinto. O esguio empreiteiro perde o equilíbrio do corpo. Um medo repentino lhe assalta, aflorando uma repulsa extrema e irracional daquela coisa velha, sentada disforme a sua frente. Sua perna trêmula retorna dois passos em direção a luz que preenche o limiar do vão, onde antes se erguia a porta. Com pouca flexibilidade, ele engancha o calcanhar na grossa madeira que havia derrubado e cai com um baque seco de costas.

- Morto, morto. Enfim o fim. Ceifou o corpo. Foi o morto que lhe trouxe.

A velha desgruda a mão da face coagulada. Ergue-se estralando todos os ossos, caminhando vagarosamente. O musgo de seu pé marca os passos que ecoam um barulho gelatinoso. Ajoelha-se diante do homem inerte. Roça as unhas com força na camisa, estourando os botões que prendem o tecido. Atordoado, ele ergue a cabeça e o sangue começa a verter do nariz. Sua visão turva o faz estirar a nuca novamente ao chão em um torpor. A velha enlaça seus dedos finos no galho podre que rola pelo chão. Salivando com um odor acre, ela tomba sua face ao peito do homem e afunda a ponta do toco, repleto de farpas, na barriga tenra. O empreiteiro, em desespero, resfolega um gemido ao sentir sua carne formigar.

- Quarenta anos eu espero. Só falta um ingrediente.

A velha faz um corte do umbigo ao peito do empreiteiro, rasgando a pele com as mãos, espalhando o sangue escuro e encorpado por todo o piso. Com uma força demoníaca, diante das veias, das tripas, ossos, músculos e órgãos, ela revira tudo com os dedos. O homem perde os sentidos.
As corujas pousam como uma mortalha na borda do teto. O empreiteiro desperta ofegante no chalé. A noite vaza porta adentro. Ele desaba a chorar, dominado pelo medo e pela dor, amortecida e tenaz, que sobe em vagalhões por sua espinha. Ele levanta de súbito, apoiando as mãos na parede de teias. Seu peito e sua barriga estão rudemente costurados por um pedaço longo de arame descascado. Ainda assim o sangue verte em fios desalinhados por toda a pele arranhada. A luz do fogo esquenta a caldeira e traça os contornos da velha. Sentada na mesma posição de quando ele havia entrado. Como uma estátua amaldiçoada. A mão apoiando a cabeça, o longo cabelo caído pelo corpo, o limo, as baratas em sua rotina, no velho vestido abarrotado, os olhos amarelos semicerrados, a unha trincada, o musgo dos pés descalços no chão de pedra. E entre os lábios o balbuciar fraco:

- O morto não trouxe... O morto não trouxe... O morto não trouxe...

O empreiteiro parte como um ensandecido pela floresta, batendo dente com dente, com o pulmão ardendo, as veias do pescoço serpenteando a pele. Sem olhar para trás, debulha-se em lágrimas. Ao longe avista lanternas. Vozes clamando seu nome. Cai nos braços de dois homens. Desmaia. Fosse o próprio diabo vasculhando seu corpo, nada encontrou, senão sangue. 
 
Nos dias que passaram, a pequena casa foi abraçada novamente pela densa mata e o jovem empreiteiro tombou enfermo, sem poder definir seu aterrorizante encontro. E a velha bruxa retorna a sua espera, imóvel e pungente, pois ainda lhe falta um último ingrediente.

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