O líder discursava à sua turba:
" De nossos
próprios corações obtemos o cálice maior da pós-vida. A insegurança que
habita nosso invólucro será execrada. Regressamos no pó do pó. Paz,
como uma manta, a tudo preencherá."
O nome era
Beatriz. Dezoito anos de um corpo curvilíneo, moreno e tenaz. Seus olhos
castanhos oblíquos eram grandes e expressivos. Olhos que piscavam em câmera lenta em direção ao púlpito.
Púlpito azul claro, coberto com seda vermelha; repleto de jovens estigmatizados, despidos e enfileirados. Palavras sobre a verdade; que doíam, brotavam em um mantra
interminável, indelével.
" A família
externa é só, e assim foi por muito tempo, uma base borrada, à parte da
verdade nua, primordial. Verdade una que te traz à família final,
fraternal. Somos a cópula de amor. Final, una, fraternal, nua."
O coral suave repetia estas palavras firmes. Quatro cantantes de tessitura alva, hipnotizante.
A
melodia percorria o salão pobre, de paredes descascadas. E os pés de cinquenta pessoas pisavam a terra batida e o corpo balançava num ir e vir
sem sair do lugar.
"Já sabem.
Já tem certeza. Seus pulsos firmes têm a decisão que lhes propicia uma
eternidade tangível, confortável. Não cansa mais a procura do arroz e
feijão, o abate da galinha, do porco, do boi. Vocês sabem que a verdade
da fome é um câncer perigoso. Não é natural viver buscando o ouro para
mastigar a comida. A natureza fornece o que comem aqui. E aqui, quantos
cansaram o corpo por abater a galinha, o porco, o boi? Ninguém. Nenhum.
Por que é tudo unificado. Somos um pensamento universal."
Rostos
sorriam, armados com dentes amarelos.
Balançavam mais e mais. Beatriz ergueu seus braços finos, escorregou os
dedos nos longos cachos. Estava feliz. Mais que um sorriso, ela
ria. Risada aberta, honesta.
" Há meses
lhes foi entregue a chave da verdade. A liberdade plena. O coração
liberto. Somos especiais. Preparados para a grande viagem que a Luz nos
preparou. Eu sou feliz, sou transbordante, pois a Luz visitou meu corpo
sacro e através dele me faço de instrumento para que cada um de vocês
prove a verdade. Caminha só quem tem o passo certo. Se você esta aqui,
sinta meus olhos na sua alma. Sinta a unidade."
Sol ardente,
escorrendo as três da tarde nas janelas grandes e gradeadas do salão. O
matagal alto, parado pela ausência do vento, ia de uma planície a
outra. Terreno irregular, difícil de definir. No cenário picante deste
isolado local, cinco homens corriam selvagens, tropeçando e arfando. O
retardatário, mais obeso, com olhos vermelhos e suor abundante, olhava com semblante preocupado para
o céu. Ele avisou roucamente os que estavam à frente:
— Urubus no céu. Urubus em circulo. Vejam!
Não comentaram a
observação. Nem ao menos tiraram o olhar do mato alto. Apertaram a corrida. O topo de um telhado cinza surgiu, metros à frente. E a visão se ampliou. Cruzaram com uma placa de madeira espetada num tronco de arvore podre, a escrita era à
mão, lia-se com letra tremida: “Luz Eterna”. Já sabiam onde estavam. Eles conheciam o
símbolo abaixo das letras, uma estrela com uma meia lua no centro.
— Ah, meu Deus do céu. Ah, meu Deus do céu. Proteja minha criança. Não vai dar tempo... Não vai dar... Meu Deus, por favor.
O homem que ia a
frente de todos, orou com voz embargada e olhos lacrimosos. O rosto
moreno desmanchava-se em dor. Contrario ao corpo firme, resoluto nos passos
corridos que dava.
— Tenha fé. Tenha fé, amigo! Vai, vai, vai...
— O templo! Olhem lá.
Galinhas saltaram cacarejando; batendo asas e trombando nos homens. Porcos e
bois que dividiam o mesmo cubículo de lama, alvoroçados com os
recém-chegados, fugiram para dentro do matagal. Corpos putrefatos podiam ser vistos, mal enterrados que estavam, exalando carniça e
assustando os homens.
" Vamos
irradiar a força do cosmo. É hora de atravessar o principio da Luz
Eterna. Abençoados. Vocês são todos abençoados! Flutuem até minha alma.
Flutuem até minha alma. Flutuem!"
Correram pela
lateral do salão. Um deles começou a bater no vidro, passando de janela
em janela. Batia no vidro, puxava a grade. Forçou a visão para o lado de
dentro. Havia muita gente. Num púlpito improvisado com caixotes, um homem
magérrimo, cabelos desgrenhados, seminu, apareceu em êxtase, discursando
algo ininteligível.
— Beatriz? Beatriz? Minha filha? — Ele retirou um revolver da cintura. — Beatriz Sansamariana?
Todos os cinco sacaram revolveres. Só havia uma porta lateral, lacrada por tábuas grossas e acorrentadas.
" A minha família é a unidade da verdade que nos completa até hoje, aqui, no solo sagrado. É aqui que nossos corpos vão ficar! As carcaças sem brilho. Espera-nos a Luz Eterna."
Gritaram os adeptos:
“Luz Eterna”
“Luz Eterna”
“Luz Eterna”
Galões de cem
litros, impulsionados por vários voluntários, foram derramados no chão de terra
batida. Beatriz retirou a camisola. Todos os presentes retiraram suas
camisolas idênticas, brancas e surradas. O salão fedia à gasolina, empapada
na terra vermelha. No púlpito, o guru gemeu alto, de olhos fechados.
As cantantes do coral interromperam sua melodia de vogal única. Emborcaram gasolina sobre seu líder.
— Beatriz! Por favor, Beatriz! Sou eu... Seu pai, Beatriz. Beatriz! Aqui, Beatriz!
A jovem virou o
rosto na direção do pai desesperado. Seus olhos estavam vazios.
Ela deitou no chão. Todos deitaram. Esfregaram-se no lamaçal.
— Desgraçados... Desgraçados... Filhos da puta! Desgraçados! Ah, Pai do céu!
O pai se pendurou
na janela, tentando clarear sua visão da filha no meio da maçaroca de
corpos. Os outros quatro homens já quase colocavam a porta ao chão.
" O ser
carnal e o ser espiritual são unos. Meu exterior é como o seu. O meu
interior é como Deus. Seu interior é um reflexo do meu. Mas a Luz pede
que nosso interior volte ao conjunto. O interior e o exterior não podem
mais ser diferentes. O caminho sou eu. Seu corpo é meu. Sou você. Você é
Deus."
Atirou
duas vezes pela vidraça, em direção àquele que discursava com tanta veemência. Acertou a cabeça e o estômago do homem. A
porta finalmente foi ao chão e o templo invadido pelos homens. O vidro, estilhaçado pelo disparo, caiu sobre
seus olhos que piscaram para revelar um caleidoscópio trocando as cores. A luz clara e quente do sol
invadiu profundamente aquele salão. Seguiu um estampido alto e um calor insuportável. Todos os vidros
estouraram ao mesmo tempo. Gritos pavorosos surgiram junto com gemidos. Corpos pegavam fogo, debatendo-se
porta a fora. O pai, lançado de costas ao chão duro, todo chamuscado, procurava a
silhueta da filha nas bolas de fogo. Caíam as lágrimas de desespero. Era
tarde demais! Era tarde demais...
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