terça-feira, 11 de junho de 2013

Preste atenção nos fios do macarrão

Olavo Mariano amaldiçoou Ferreira de Tarso com tamanha fúria que lhe salpicaram gotículas de saliva por toda a mesa da taberna Alebeblê.

-... E espero que morra de engasgo com todo o grude insosso que tem me servido todos os dias. Paspalho!

Possesso, o aldeão empurrou a pequena mesa de madeira para frente e ergueu o corpanzil em direção a inexperiente servidora de aperitivos da floresta de Grumixama.

- E você, lagartixa? Por que ri? Desvairada do mato sirva-me Vespusiano Lara em copo de boca larga. Mas bote aí mais que meia dose. Já male-male eu posso suportar este tempero de cruz credo feito por Tarso. 


Um burburinho crescente flutuou até o ouvido do atarefado Ferreira de Tarso, que em sua cozinha pilhada de pratos e carnes, temperos e cereais, esforçadamente conseguia manter a pronta entrega de pratos fumegantes aos seus clientes. Bastou a voz rouca de Olavo Mariano acertar-lhe a aurícula para o mestre cuca largar meia pata de cabrito na pedra de corte e adentrar o salão obscuro da taberna.

- Muito bem, antão, que problemática vossa pessoa traz para minha aconchegante casa de comilança?

Olavo Mariano, general das tropas de Vovorovovo demonstrou grande satisfação por alcançar a atenção do proprietário gourmet, arqueando um sorriso aberto e de grandes dentes dentuços, contumazes moedores de novilhos.

- Teu prato do dia, vossa sapiência, é carregado de tempero, eu diria. Por acaso faz uso do mesmo sabor que deve impregnar teu sovaco para massagear as costelas do porco preto? Ou por ocasião armaste uma peneira de pentelhos e carunchos para coar tão rica variedade de molhos? 

Acostumado a atender ruminantes ingratos que viajavam encobertos por aquele trecho florestal de acesso pouco requisitado para o reinado de Vovorovovo; Ferreira de Tarso, num gesto muito usado como sutil ameaça, desdobrou as mangas de seu uniforme cor de creme encardido até a ponteira do cotovelo estar à mostra.

- Por acaso a estrada real lhe poderia ser de mais valia no gosto gustativo, bravo general.

- E não por isso, cozinheiro de mão amarela, exatamente este é o rumo que meus homens e eu tomaremos. Esteja certo que, tua cabana, taberna, seja lá como a chama, só fica intacta pela urgência que urge pela presença de meus bravos Touros (Soldados leais ao Rei Vovô Vinólio).

Proferido o alarmante discurso do enfezado, deu volta e meia para a saída, tilintando a espada na malha de aço, pisando áspero no chão de pedra. Seguiu-se então uma leva de vinte Touros que também lá haviam se deleitado com os pratos do dia, esvaziando a antes lotada taberna Aleblebê.

A inexperiente servidora de aperitivos da floresta de Grumixama, Moça Mariana Queteparta, a mais nova da família Queteparta, admiradas bruxas curandeiras, em seu primeiro emprego para conhecer a sociedade e todo o mais, notou de um pulo a falta das moedas de prata nas mesas recém abandonadas. Inclusive a raspa de cobre que lhe é de tão valia como gorjeta. Irritada, como se é de esperar de jovens em flor, sua face doce avermelhou-se inda mais e seus pezinhos bateram emburrados no barril de Vespusiano Lara. Pirraça que fez tremer o gourmet impávido.  

- Se me quebra um Vespusiano Lara de safra tão sublime como esta de oitenta e oito, lhe mando de volta para sua avó Senhorinha Mariluce. Não adianta bufar, Moça Mariana. O que seria dia de lucro acabou-se dia de desaforo. Reporei agora o estoque devorado, com valores que seriam um pouco de ti, um tantão pra mim, um tanto pra taberna. É o que se faz quando não estamos na Estrada Real.

E lá pela Estrada Real, riam de engasgar, de encher a bolsa com urina, os Touros e seu General. Gozavam da fortuna economizada à custa dos trejeitos executados por Olavo.

- E quando a marmota subiu seus panos para mostrar os bracinhos de pêlo eriçado? Mauá, Mauá, Mauá, Mauá!

- Ai que prazer, General!
Mauá, Mauá, Mauá! Já estava pelo colarinho de tamanha tristeza por ter que deixar uma raspa de cobre na gorjeta.

Um terceiro Touro enxugou as lagrimas do riso e emendou lá de trás:

- Flaviolouco, aquela queridinha que nos servia, tão bonitinha. Dar-lhe-ia com prazer uma raspa de cobre e uma raspa em seu tacho ajeitado. Reparas-te?


Mauá, Mauá, Mauá, Mauá, Mauá, Mauá, Mauá, Mauá...

E riram tanto que a marcha foi interrompida e assim, no afobamento, mais da metade do conjunto dirigiu-se a margem da estrada de cascalho para enfim libertar a bexiga com água de joelho, tal qual numa erupção iminente.

- General? General, que cheiro horrendo de putrefação. De onde parte?

- Mauá, Mauá! Parte de seu falo sujo, oh grosseirão. Mas é forte e insuportável. Pelos deuses, parte do meu também!

- Ah, General, meu gotejar faz borbulhas nas folhas de heliconia.

- Que dor horrorosa!  

Um a um, os Touros contorciam-se de dor. Tombaram na margem, sufocados pelo odor de vinagre e sangue. Olavo Mariano arrastou-se até poder tocar na rédea de seu cavalo. O quadrúpede relinchou de temor e afastou-se de lado, abandonando seu senhor e mestre, que logo ali derretia em sua própria urina.

Na taberna Aleblebê, Tarso caminhava por entre as mesas a contar os pratos e os restos de comida.

- Prôpala nos ajude! Tamanho rombo orçamentário. Amanhã tuas tias, Moça Mariana, virão aqui para o quebra jejum e nada lhes poderei servir. Por boa sorte ainda resta Vespusiano para acalentar o gelo matinal.

Moça Mariana meio que coçou a lateral da barriga e com um fio de voz falhada revelou sua arte:

- Meu senhor, peço-lhe perdão. Em nome de Prôpala, Morse e Utone. Ao primeiro reclamar do General, servi-lhe uma taça de Vespusiano; e seus Touros logo ergueram suas canecas e lhes servi também. Possessa com o destrato, servi a todos uma vez mais. E após, pouco antes do senhor ir dar com aquele bruto tratante, servi o restante.

Tarso suplicou em direção ao teto da taberna, palavras mudas, sem saber o que articular aos deuses. Um infortúnio de dia, uma má sorte ao pisar fora de sua cama. Apunhalado de todos os lados. Murcho como um saco velho de fécula abriu as mãos como um pedinte, impressionado com a diabrura de uma jovem tão delicada. A inexperiente servidora de aperitivos da floresta de Grumixama ainda não havia terminado a revelação.

- Mas, senhor Tarso, fiz o bem com o mal. A moeda foi paga de bom grado. Na segunda dose pude acrescentar Poeira de Vintém na bebida. Servi dançando abraçada ao barril para agitar a mistura. Um desvario que nós bruxas curandeiras podemos nos permitir ao menos uma vez na vida. Saiba que os matei por dentro e agora levarei toda uma vida para saldar as almas com curas por todo o vilarejo. Somos todas deste feitio, o equilíbrio entre o bem e o mal. 

- Minha filha, que mau agouro! Em morte, até mesmo antes, eles saberão que a mão fria lhes extirpou a partir de sua ultima estada em vida, e esta foi feita aqui! Não estou contente, saiba. Não aprovo! Estaremos à mercê da sua vingança, com uma nova vingança que virá daqueles homens! Que os deuses nos protejam.

Mais atolado em problema, o General Olavo capengou como um bêbado entre seus Touros trementes.

- Um guerreiro juramentado em nome da Majestade Vovô Vinólio, não será extinto por uma hipocrisia covarde e invisível. Olhem e escutem muito bem, já que não vejo destino outro senão o repouso eterno. Batalhemos uma última contenda. Vingaremos a vilanesca cilada. É claro que corre veneno em nossas veias. Mas de onde ele veio?

- Pegamos a peste na Taberna Aleblebê.

- É um fato que ninguém discutirá. Muito bem, Ovolonando.

- O maldito Tarso, senhor General. O maldito anteviu nosso calote e nos envenenou!

- Não, senhor General. Creio mesmo ter sido a gostosa que nos serviu o Vespusiano Lara.

- A bruxa!

-
UMA BRUXA?

- A bruxa, bruxa, bruxa da floresta.

- Maldição! Certamente, um conluio para nos derrubar.

- A bruxa e o cozinheiro.

- Nos serviu dançando!

- Agitando o barril.

- Misturando o veneno.

- Matando-nos por dentro!

- Pó de Vintém?


- Pó de Vintém! A bruxa!

- O cozinheiro!

- O tempero!

- O sovaco!

- Pen-te-lhos...

- Vin...

- ...gan...

- ...ça

- !
 
 
Um pouco, bem pouco, mais calmo, Ferreira de Tarso, gourmet e dono da Taberna Aleblebê, sentou-se com Moça Mariana para repassar os planejamentos que havia matutado.

- Enviei um coelho mensagem para a Vila de Vigoroso. Como sempre prestativos, já retornaram o animal com a oferta de mantimentos para nosso preparo. Chegará logo pela manhã de amanhã. Boa noticia; um tanto salgada no preço, mas ainda assim uma boa noticia. Também me preocupa a possibilidade do retorno do General Olavo Mariano...

- Ele está morto. Todos mortos, os Touros e o General. Pó de Vintém é mortífero.

- Mas tu sabes e eu sei e acho que qualquer ser vivo sabe que um espírito atraiçoado tem sua justa chance para carregar o executor consigo. Quem é o executor? Você? Não, doce menina, sou eu, você e qualquer um que aqui estiver. E sabe o que me deu na telha para fazer?

- Uma proteção?

- Uma múltipla proteção. Ajude-me a conjurar um feitiço. Guardaremos portas e janelas, mesas e cadeiras. Chaminé, armários, banheiro, fosso, nós mesmos. Tudo!

- Agora?

- Já. Sem demoras.

O galo cantou e juntou-se aos acordes da manhã, no vento noroeste, no eco do rio. A sombra da madrugada ia a cada segundo clareando-se do intenso negro ao violeta, ao azul escuro, ao azul claro. A marcha fúnebre e arrastada do batalhão de fantasmas esvaneceu-se a apenas alguns metros da Taberna Aleblebê. O último a ficar invisível foi o General que os liderava. Olavo Mariano apontou o dedo, tal qual uma bandeira hasteada, na direção de seu objetivo de morte. Em fúria, desapareceu.
- Parece tudo tão calmo lá fora!

- Feche a janela, garota. Não dê chances à moleza da sopa. Uma alma te agarra pelo pescoço e lá se vai umbral a dentro.

- Suavize sua tensão, cozinheiro. Dê o seu melhor, pois acabei de avistar minhas tias. Recepcione com boa comida a família Queteparta.

- Espere! A porta. Certeza que está bem protegida?

- Com o conjuro da “Minha Mãe Mortinha” até mesmo se arrancassem a porta, pela soleira nem o demônio ousaria entrar.

- Veja lá, antão.

Numa marola de dimensão paralela, os Touros observavam a primeira movimentação na frente da taberna. Mal acostumados com a vaporização de seus corpos, flutuavam a um palmo do chão, trespassando uns aos outros, descobrindo novas sensações de segurar uma pedra ou uma folha.

- Tem posições que posso ver minha mão a segurar esta pedra, mas se pisco, perco de vista minha própria pele cinzenta. Engraçado! Mauá, Mauá, Mauá!

- Cala a boca fantasma do abismo. Aquela velha de bengala está olhando em nossa direção. Largue a maldita pedra!

- Sim senhor, General.


A velha de bengala, Madame Brunela Queteparta, cutucou Esposa Ravenala e apontou na direção dos fantasmagóricos.

- Viu uma pedra danada flutuando?

- Vejo cada coisa quando estou com fome!

- Sentiu que nessa porta conjuraram “Minha Mãe Mortinha”?

- Sinto cada coisa quando estou com fome!

- Antão tá bom! Mas há de ter algo de esquisito pela aí.  
A inexperiente servidora de aperitivos da floresta de Grumixama recebeu com grande alegria e festejo sua família para o quebra jejum. Acomodou em uma única e grande tabula as sete avós que lá estavam famintas.

- Que saudades, sua linda.

- Sua linda, saudades.

- Linda, saudades sua.

- Que linda!

- Saudades!

- Linda!

- Quê?

Encantada por poder mostrar serviço útil às suas queridas avós, Moça Mariana abraçou a cada uma delas.

- E o que de tão bom vamos papar nesta manhã?

- Um momento, doce avó, um momento, minhas amigas. Vou ter com o grande Ferreira de Tarso na cozinha e já de pronto servirei estas lascas de pão preto e azeite.

- Faz muito bem, sua linda. Vá lá, vá.

Uma densa bruma avizinhou à volta da taberna e no alto desta bruma as cabeças do além flutuavam rente a porta.

- Por que não entra? Invada e bote abaixo, General.

- Não consigo! Pareço estancado, amarrado na maior das ancoras. Há algo de magia. Flaviolouco tente entrar pela janela.


O corpo do fantasma colou-se na janela e sua perna parou num arco de violetas. 
- Tampouco eu consigo entrar. Parece um muro de tijolos. Mas não tem nada, exceto as violetas.

- Eles conjuraram um feitiço de proteção.

- Sim. Tem razão.


- Os malditos!

- O cozinheiro!

- A bruxa!

- O sovaco!

A bruma moveu-se para a porta dos fundos. A porta da cozinha.

- Elas gostaram do pão preto, Moça Mariana? Foi também uma receita de minha avó. De avó para avós.

- Que demora a entrega dos mantimentos...

- Ouça, batem a porta. Atenda logo.

Enquanto três calvos senhores suportavam enormes caixas com uma sorte variada de guloseimas, Moça Mariana desarrolhou o tranco da porta da cozinha. Neste tempo, um dos Touros avançou de ombro para a fechadura.

- Vejam só! Sumiu o corajoso. Conseguiu entrar, ele...

- Estou aqui atrás, Ovolonando.

- Mas...

- Também não sei. Avancei na entrada e aqui estou.

- Podemos possuir um destes entregadores?

- Podemos fazer melhor. Pois talvez os entregadores não sejam convidados a entrar.

- Ué, dizemos que estamos com fome.

- Mas podemos possuir em grupo? São somente três homens e pequenos homens.

- Vamos fazer uma coisa mais invasiva.
Mauá, Mauá, Mauá, Mauá

Moça Mariana retesou os músculos do antebraço e com esforço deitou as caixas sobre a pia. Pagou oito moedas de prata aos três entregadores e fechou a porta. 
- Faça algo rapidinho, meu senhor. Minhas avós já começam a querer jogar magias na taberna para lhe apressar.

- Como anda minha sorte, é capaz mesmo delas destruírem o local. Já havia pensado em algo rápido. A água está a ferver e agora vou mergulhar este delicioso macarrão.

Cansado da maratona emocional que as últimas vinte e quatro horas lhe entregaram, o gourmet avançou no pacote de pasta, mas o caixote começou a se mover. Tarso praguejou por mais uma leva de ratos que possivelmente lhe haviam entregado junto aos alimentos. Chutou a caixa e agarrou apressado um feixe generoso de palitos finos compostos por ovos, farinha e anis.

- Maravilha na panela. Maravilha de refeição. Meu ganha-pão, macarrão, macarrão.

Afogou a massa na água borbulhante, chutou o caixote mais uma vez e retirou uma dúzia de tomates vermelhos.

- Molho saboroso, macarrão, macarrão.

As vovós, ansiosas com o aroma de ervas que preencheu o local, brindaram a bonança que estava por vir com a cristalina água feroz, recolhida em potes de mel nas madrugadas mais frias.

- Coma conosco garota. Hoje teu chefe mestre cuca vai te permitir esta graça. Afinal, somos nós que proveremos a féria.

- Muito eu concordo, Senhorinha Mariluce.

Dito e feito surgiu Ferreira de Tarso segurando um tacho enorme e fumegante. Pousou no centro da mesa o emaranhado brilhante de molho e massa.

- Boa fartura a todas.

Ao contrario da aparente lentidão que as velhinhas carregavam, seus garfos eram ágeis e ávidos. Enrolando-se como cobras matreiras nos fios tenros. As bocas miúdas sopravam e sopravam aquela quentura apetitosa.  
- Provem e me dêem um elogio generoso.

- Provaria sim, mas gostaria de saber o que são estas porcarias penduradas no macarrão.

O cozinheiro quase em colapso aproximou seu nariz do tacho de macarrão.

- Mas qual o motivo do insulto?

- Veja lá, cozinheiro. Nenhuma de nós vai comer.

Todas as avós baixaram o garfo cheio no tacho. Inclusive Moça Mariana que já estava a meio caminho da língua.

- Preste atenção nos fios do macarrão!

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Os Touros e o General Olavo Mariano escalavam os fios da massa, em formas diminutas, tal qual pedaços pequeninos de giz branco. Seguidos de perto por uma bruma que fazia às vezes de vapor.

- Preste atenção, eles praguejam. Mas que tipo de fantasma faz a comida de reduto?

- É o General que assassinei! E todos os seus soldados!

- Moça Mariana Queteparta, era assunto selado que nada de magia faria fora de nossa morada.

Assim, sem saída na situação, a garota contou a história em termos detalhados. Ao passo que Ferreira de Tarso volteava sua massa com o garfo de um lado ao outro, com temor e curiosidade.

- Mas é incrível. Ao mesmo tempo em que parece apetitoso, é repulsivo. Talvez exótico. Qual o sabor de um bom fantasma?

Ninguém ainda havia provado um fantasma. Mas o quebra jejum estava difícil de ser devidamente aproveitado. Pensaram em conjunto, o que pensava um fantasma para atrelar-se na comida?

- Pois é esta a receita que todo cozinheiro busca. $$$$$

- O quê todo cozinheiro busca?

- Um novo sabor.

- Tão caprichoso.

- Até parecem gostosos.

- Lembra algodão doce. : )

- Podem engordar!

- Podem matar! _ _

- Estão tão coladinhos...

-... aos fios de macarrão!  
 
 
Os fantasmas tinham um gosto peculiar, um gosto de não sei o quê. Naquela manhã, Olavo e os Touros foram degustados. O umbral é um lugar estranho quando se está dentro de um estômago. Era o pensamento que ecoava na cabeça daquele  agrupamento infeliz de almas penadas. almas penadas. almas penadas.




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