Eu faço entregas de produtos delicados por toda a cidade de São Paulo.
Trabalho com isso há três anos e nunca faltei com meu serviço. O nome da
empresa para qual trabalho é "Entregas Delicadas". Direto ao ponto, não
é? O que carrego na minha Van branca, que é toda bonitona, adesivada
com faixas onduladas verdes e vermelhas e uma bola azul que imita o sol,
são coisas fantásticas e especiais.
O que entrego, pra ser bem
claro, são itens que não existem, mas que existem. Hum, quero dizer, as
pessoas acham que não existem, mas existem pra quem tem muito dinheiro.
Por exemplo, entreguei semana passada um disco de vinil branco do rei
Roberto Carlos que foi gravado em 1976, com apenas uma misera cópia! Nem
o próprio Roberto Carlos se lembra deste disco. Só tem duas musicas,
cada uma tem vinte minutos. O álbum se chama:
"♫Sois só, somente se, assim será ♫".
Bacanérrimo,
concorda? Bom, para alguém comprar algo deste tipo é preciso saber que
este algo existe. Nós, da empresa "Entregas Delicadas" somos como
garimpeiros improváveis, e abrangemos o máximo de tudo. "Máximo de
Tudo", essa é ótima. Aí nós especulamos prováveis interessados que
queiram gastar muito por uma singularidade.
Pois é, este exemplo
foi pequeno, vou dizer o que farei agora. Acabei de acordar e é sábado
de manhã. Tenho uma entrega muito especial que já está acomodada na
traseira da Van. Essa entrega é particular, direto ao meu amor, minha
namorada, Clara Lina. Daqui da sede da empresa, no centrão velho, vou
guiar por pelo menos quarenta quilômetros até a zona sul. O
inconveniente, mesmo já acostumado, é ter que dirigir com extrema
lerdeza. Material delicado é assim mesmo, mas valerá a pena. O que tenho
aqui são quatro réplicas de corações fumegantes de Boitatás. Saca,
Boitatá?
Segundo a wikipédia: "No folclore brasileiro, o Boitatá
é uma gigantesca cobra-de-fogo que protege os campos contra aqueles que
o incendeiam. Vive nas águas e pode se transformar também numa tora em
brasa, queimando aqueles que põem fogo nas matas e florestas." Então, é
mais ou menos isso, mas não tão místico assim. São belas serpentes
enormes que gostam de viver no meio do fogo, coisa louca mesmo. Não
matamos os animais pra arrancar os corações, não, não mesmo. Boitatás
cospem o tempo todo corações fumegantes, é só estar no lugar certo pra
coletar alguns.
Esses que vou presentear minha namorada, e são
realmente magníficos, estão colocados no meio de tubas de vidro de
cristal e dessas tubas sai um vapor esverdeado o tempo todo, sem parar,
durando pelo menos uns dois anos. Os corações têm o mesmo formato que um
coração humano, mas se parecem com carvão, cheios de rachaduras
incandescentes. Estou empolgado, pois é um presente-surpresa.
Desço
o quarteirão, pego o primeiro semáforo vermelho, de uma série longa e
tediosa. A maldição do farol vermelho. Pelo menos hoje, que tenho que
andar devagarzinho, quase nem é um problema. Fica só o costume de
suspirar quando a luz fica vermelha. Giro o "dial" do rádio e bingo, a
pedida do dia.
"...neste sabado de manhã muito, muito,
muito ensolarada, nós vamos embalados com a contagiante: You Really Got
Me, The Kinks..."
♫Girl, you really got me goin'
You got me so I don't know what I'm doin'
Yeah, you really got me now
You got me so I can't sleep at night♫
http://www.youtube.com/watch?v=dSQOVlkaJT4
♫See, don't ever set me free
I always wanna be by your side
Girl, you really got me now
You got me so I can't sleep at night♫
Boa!
Nada melhor que dirigir com a alma elétrica dançando no teto da Van.
Mas não vou empolgar, pois a traseira está leve e assim o balanço do meu
quadril balança as tubas. Elas estão amarradas em xis com um elástico
macio, mesmo assim, se bobear "Pláft, Créck". É este exato
barulho que to ouvindo por cima da música, mas graças a Deus está vindo
dessa doceria judaica na esquina. Quatro garotos correm com os chinelos
estourados, deixando para trás a vidraça também estourada, segurando
potes com geléia de amora, aparentemente fabricada sob supervisão
rabínica (eu conheço de longe os selos dourados de uma fabrica de
alimentos Kasher). Um aparente reflexo da violência no centro de São
Paulo é o fato de um homem baixinho com roupas largas e asseadas sair da
doceria com uma espingarda atirando como um maluco na direção dos
aparentes trombadinhas. Atirando na direção mais ou menos do corpo leve
deles, que também é a direção da minha sagrada Van com faixas onduladas
verdes e vermelhas e uma bola azul que imita o sol, vixe Maria! O tiro
eu não consigo saber pra onde foi, mas fora balançar com tudo meu
transporte, faz um ruído tipo "Plonk Plak" e não sei mais nada
que o farol aberto é minha deixa para sair fritando o pneu, buzinando e
rezando baixinho pra nada se quebrar.
A Van é toda fechada na
parte traseira, eu não consigo visualizar a situação das coisas. Acho
que é a única falha que existe nela. Outras falhas são por raros
descuidos meus, tipo calibrar pneus, trocar óleo, trancar portas, coisas
não tão absurdas. Este susto me impulsiona pra pisar mais um pouco e
cair na avenida marginal, pra cortar de vez o trânsito e a loucura das
tripas secas do bairro. Quero ouvir mais The Kinks. É difícil repetir
esse tipo de som. Deveriam, pois não dá pra aguentar Sultans Of Swing
três vezes a cada duas horas, agora The Kinks que é curtinha, até dá.
Chego
ao destino. É um pouco complicado manobrar na rua da Clara. Bairro
tranquilo e de ruas estreitas. A mão única me faz parar de ré na garagem
que fica aberta. Falsa sensação de segurança por causa do vigia da
guarita lá na ponta da esquina. Não vejo muita utilidade, bandido se
quiser vai render o vigia e fazer “a limpa”. To sempre reclamando deste
ponto. Ainda bem que a garagem dá altura pra Van. Duas buzinadas e lá
vem ela graciosa no vestido floral e sua corrente de cabelo do Papa
(tinha tanta corrente de cabelo do Papa no estoque que eu peguei
umazinha pra presentear). Ah, sim, eu não costumo fazer isso, sempre
pago o que pego. Mas coisas similares a caneta e bijuterias baratas
viram até um fardo para a logística. Acho também que dou presentes em
demasia. Será que presente demais é mal? Bom, são sempre bem
recepcionados!
Beijo longo e abraço apertado, sorrio como criança e levo-a até a traseira, conto até três e “tcharam”! O grito de susto que a Clara dá é acompanhado pelo meu. Entendi agora o barulho de "Plonk Plak"
que ouvi no meio dos tiros lá no centro. Foi a porta da Van (que eu
esqueci de trancar) sendo aberta e fechada as pressas pelos
“trombadinhas” da geléia. Eles mal esboçam reação com a descoberta,
tragando a fumaça dos corações de Boitatá. As tubas todas lambuzadas de
geléia e um cheiro forte de incenso.
“Querido, vou pegar o presente que tu me deu no último dia dos namorados, que quê tu acha”?
Eita, presente bem dado rende fruto. Estava mesmo curioso pra poder usar este mimo que me custou uma pequena fortuna.
“Pega ele lá no cercadinho então, Clarinha”.
Os
corações de Boitatá brilham intensamente a cada fungada das bocas
rachadas. Os garotos comemoram em Alfa o esconderijo inusitado que
arrumaram. Não tem problema, não. Este que está vindo no colo da Clara,
com terninho de risca de giz e gravata borboleta, é um mini político das
Ilhas Caiman. Deve medir uns quarenta e dois centímetros. Transporta
qualquer coisa para contas seguras e sigilosas. Só precisamos
alimentá-lo com endívias recheadas com creme de milho e camarão. Ele ama
endívias mais do que ama um trambique. De onde ele vem existem muitos
mini políticos de quarenta e dois centímetros. Obviamente a existência
destas figuras é negada e eu paguei uma fortuna pra ter o tampinha
conosco por uns meses. Tipo, estamos pensando na possibilidade de
morarmos juntos e o mini político vai nos ajudar a reter uns bons
dólares.
“Pessoal, vamos fazer uma troca rápida?”
Subo
na Van e tomo cada uma das tubas das finas mãos sujas, com o máximo de
cuidado pra não quebrá-las e ao mesmo tempo exercendo a firmeza
assustadora de um chute na canela de cada um destes vermes folgados.
Não tem nada de “Aí tio, porra!”. Oras, vão se "foderem"! Até
parece que vou dar uma de mole depois desta invasão. Desço da traseira e
os observo encurralados no canto, conformados com a iminente chegada da
policia. A Clara coloca com cuidado o mini político das Ilhas Caiman
para dentro do veiculo. Ele ajeita o terninho, funga, estala as mãos e
pergunta:
“Estes que aqui estão, vão para o cofre?”
“Pode colocar, mas fique atento ao prazo de validade, se puder trocar todos no mercado de ações humanas, eu ficarei grato!”
Fecho a porta da Van ♫"pra não ver passar o tempo. Sinto falta de você. Anjo bom, amor perfeito no meu peito. Sem você não sei viver"♫.
Citando o rei Roberto, enquanto o veiculo chacoalha cheio de grunhidos.
É difícil transportar pessoas pelo Malote da Ganância (Que é um grande
invento pra lavar dinheiro em toda parte do planeta). Foco agora no
carinho da minha Clara, que, abraçada nas tubas com corações fumegantes,
me convida para desfrutar deste dia maravilhoso. Entregas delicadas,
agora só na segunda feira.
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