Gritava a ouriçada cozinheira do Sargento Marcos Gimenez:
- Lhe parto, cabeça de alho!
E balançava aos ares a grande faca afiada.
- Lhe furo, cebola nojenta.
E estocava o ar com a grande faca afiada
- Arranco suas quatro orelhas, pentelho!
“cataploft”
Foi ao chão a cozinheira com
seus peitos enormes balouçando. Já fora do limite do quintal da
propriedade, corria em velocidade o garoto de duas cabeças. Carregava
em seus braços finos uma panela cheia de sopa. Fumegava ao longe, cada
vez mais rarefeita a fumaça, por entre o mato mais alto.
- Dona Deusdina, que balburdia é essa? – Indagou Aroldo, o mordomo da família Gimenez.
A mulher rolou para o lado e pôs-se a erguer todo o corpanzil. Fez figa com ambas as mãos e revelou seu caso:
- É coisa do filho do patrão, o Bruninho. Essa peste entrou na cozinha e disse logo que a lavagem tava pronta.
Aroldo coçou sua costeleta pequena, olhando profundamente nos olhos da cozinheira.
- Dona Deusdina, faça um bocado
de esforço para não implicar com o filho do patrão. Toda essa farra
por causa de uma brincadeira? O menino come todo dia sua comida.
Dona Deusdina passou resvalando
os peitos no ombro de Aroldo, com tamanha força e brabeza que o
desequilibrou momentaneamente. Antes de entrar na cozinha ela disse de
voz firme e bem dita:
- O caso é que quando falou que a comida era lavagem, apareceu o Porcoso.
Aroldo franziu o rosto e seus olhos ficaram pequeninos. Coçou sua pequena costeleta e disse:
- Apareceu quem, mulher?
- Porcoso, Deus me livre. Irmão
do Curupira. Veio fugido lá do norte. Uma criatura muito perigosa.
Vive ai no meio do mato, tratando com seus amigos porcos. Nasceu com
duas cabeças, uma virada pra frente que nem a gente e outra virada pra
trás. É ligeiro que só vendo. Sujo que nem um chiqueiro. Aparece quando
tem comida feita na hora e rouba ela quando alguém a chama de lavagem.
Tão magro que parece cachorro de rua.
- Uai. Diga lá uma coisa. Você acredita nessa crendice amalucada? Onde já se viu inventar tal figura?
- Mais ô homem, se não quiser
acreditar, não acredite. Fui eu que passei a encrenca. Agora me deixa
que vou descascar batata. Sai daqui que o almoço tá atrasado.
O mordomo Aroldo mordeu um talo de salsão e deixou a cozinha com meio sorriso no rosto.
Bruno saiu debaixo do balcão e sentou de um pulo na pia.
- Tia Dina, eu vi o Porcoso também.
- Pois é menino. Você o viu
roubando nosso almoço. Já tinha lhe contado dele e que não se deve
chamar comida de lavagem. Isso é muita falta de educação.
- Mas tia, eu duvidava.
- Duvidava é? Afasta essa bunda da pia que eu vou partir a galinha.
- A Silvana vai querer ver.
- Ah, mas não vai ver. Deixa aquele bicho asqueroso bem longe daqui. Sua irmã vai bem querer tirar uma foto.
Bruno saiu correndo, rindo com muita empolgação.
Dona Deusdina aprontou uma mesa
suculenta, repleta de delicias. Um estufado frango decorava o centro,
com a pele dourada e suada, escorrendo um caldo perfumado nas batatas
cozidas. O cesto de pães frescos, tostados e crocantes, chegava a
estalar com o calor. O macarrão aguardava o repouso do molho de tomates
com manjericão. A cozinheira sorria e entornava o espesso vermelho na
massa quentinha.
- Agora sim, está pronta a lavagem. – Ressoou alto a voz de menino.
Caiu metade do molho no chão. E depois de um berro de raiva, Tia Dina agarrou uma colher de pau, muito grande.
- Seu menino arisco, sem respeito, mal educado. Agora vou te ensinar uma lição.
A cozinheira não viu a irmã do Bruno, mas ouviu sua voz alegre encher o ar com perguntas.
- E ai Bruninho, cadê o tal Porcoso? Cadê ele? Quero ver também. Você estava caçoando da Dina?
A indignada Dona Deusdina segurou a colher de pau com ambas as mãos e repreendeu a garota.
- Croma Silvana Gimenez, você
encoraja seu irmão pequeno a ofender as pessoas. Será que seus quinze
anos não te trouxeram juízo na cabeça? Dê-me uma boa desculpa pra não
chamar o senhor seu pai até aqui.
Bruno afundou a cabeça na borda do vestido da irmã e ela tremeu tanto que derrubou a sua câmera fotográfica.
O garoto gritou, abafado no vestido:
- É o bicho porco do mal!
A cozinheira virou-se no puro
instinto e deu com a colher de pau na cabeça dura do ser franzino e
imundo em sua frente. A cabeça virada para as costas do Porcoso foi a
que gritou da pancada. A cabeça virada pra frente só olhava para o
frango quente em suas mãos. Assustada, Dona Deusdina virou-se para as
crianças e largou o braço para trás novamente, na tentativa de acertar a
horrenda criatura.
- Some daqui bicho asqueroso, fedido, malvado.
A colher de pau passou direto pelo vácuo e acertou a cesta de pães. Croma Silvana interveio:
- Ele saiu correndo. Vamos pegar essa coisa.
- Não, não irmã. Vou chamar o Tio Queijinho pra dar um tiro nisso.
- Ai Bruno, me solta. Nem foto eu bati.
E nessa fração de tempo, Croma
correu em direção ao quintal, no rastro do estranho aroma impregnado no
ar. Um cheiro de imundice com tempero de frango assado. Tia Dina, com
as bochechas vermelhas, agarrou a apressada garota:
- Silvana, ô filha. Fala para o Porcoso: “Zás - trás, nó cego”!
- Quê?
- Fala “Zás - trás, nó cego” que ele se perde.
E foi a garota, com a câmera
firme nas mãos. Ela via as duas cabeças se chocando em um único corpo. O
mato aumentou de tamanho e tudo ficou mais denso. As folhas
farfalhavam logo à frente. Croma também era rápida e cada vez chegava
mais perto, no encalço do Porcoso.
- Atrás de um nó cego. – Ela gritou.
Agitada, ergueu a câmera e
arriscou uma seqüência de fotos. Olhou no visor e arrepiou-se com as
costas do Porcoso e um rosto horrendo abrindo a bocarra.
- Não está certo isso. Como era? “Zás, nó cego”.
O mato começou a rarear e ela
ponderou a situação em que se encontrava. Já longe da casa, depois do
matagal e à beira da floresta. A vegetação arbórea, a esta altura,
engolfava os dois.
- “Zás - trás, nó cego”!
Porcoso diminuiu a marcha e as
duas cabeças fizeram caretas mais feias que as suas feições normais.
Derrubou o frango no chão e correu para a direita. Mal começou e parou
indeciso. Correu para a esquerda e também parou. Voltou para trás um
pouco e surgiu em sua frente a garota, que tomou um susto com o súbito
encontro. Porcoso voltou pra frente e deu de nariz numa arvore enorme. A
cabeça virada para as costas começou a chorar e de seu nariz o sangue
escorreu. Chorava com um grunhido pavoroso. Croma sentiu o nó na
garganta, bateu uma foto e saiu correndo e gritando, de volta para o
lar.
Na casa a aguardavam, o mordomo Aroldo, o “Faz Tudo” Queijinho, a cozinheira e seu irmão.
- Ai minha querida. Que susto. Que perigo. Que imprudência.
Tia Dina abraçava a garota loira, afogando-a em seu corpo rechonchudo.
- É muito certo que eu vou dar uma bela espoletada nos garotos do vizinho, o Senhor Tobias. Ah, se vou. Não é Queijinho?
- Sim senhor, senhor Aroldo. Vamos espoletar essa molecada.
Bruno desgrudou sua irmã do abraço da cozinheira.
- Silvana, você é corajosa que nem eu. Deixa ver a foto.
Ela agachou e ligou a câmera.
- Olha ai que bizarro. Só consegui duas, meio tremidas.
- Nossa! Que feio. Muito, muito feio.
Queijinho, o “Faz Tudo” da casa, pegou a câmera das mãos de Croma, com seu modo brusco peculiar.
- Uma peça bem pregada. Pode deixar, viu menina. Esses moleques vão ter o deles.
Croma sorriu e pegou de volta o objeto.
- Crianças, fiz mais um pouco de macarrão. Vão se lavar que daqui a pouco eu sirvo.
Dona Deusdina olhou muito séria para o pequeno Bruno e este tampou a boca com as duas mãos. O que fez todos darem muita risada.
- Tia Dina, quem te disse que o Porcoso ia se perder se eu falasse “Zás - trás, nó cego”?
- Quem diz é o povo, minha filha. A gente acredita se quiser acreditar.
GIMENEZ, Croma Silvana. Novas Lendas do Brasil – Relatos Encantados Encontrados. São Paulo: Ed. Cipó ; 2008
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