quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Invasão ao castelo do Papai Noel

Ao Velho Noel (Bola na arvore) *

Pelo sagrado milagre de minha imortalidade, neste pedaço de papel eu lhe envio um aviso prudente. Não sei quando e nem como, mas uma criatura de outro planeta e de outra Mãe Natureza, má de tudo e sem sentimentos, vai atacar seu lar. Tratou de dar cabo de meus pêlos e minha sagacidade. Reconheci o corno singular que sai do pulso. Atrocidade! Fui levado até sua nave e vi uma lista reveladora e trágica. Há alusão a tua figura. Deixo-te como posso o aviso. Espero que chegue pela Cegonha.

Coelhinho da Páscoa (Patinha de neve) *



Vindo da galáxia anã “Grande Nuvem de Magalhães”, Mantú retorna ao planeta Terra. Seguindo em direção ao Polo Sul, para dar continuidade a sua lista de caça.

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Jesus Cristo ⌂ ┼ ﻻ ﻹ ﻵﻍ ﻊ ﻒ ﭢהּ שּׁ ◙
Ghandi ⌠⌡◘ Ludwig Bonaparte Winston Colombo Da Vinci
Charles Darwin Diana Dickensﻍ Walt Disney Edison Albert E = MC²
Federico Fellini ﻍBenjamin Sigmund Galilei Hendrix
Alfred Hitchcock Adolf Ж Houdini Michael Jackson Kennedy Luther King
Kubrick Vladimir Lenin Lennon שּׁ Vurukatte Abraham Marley Michelangelo
Wolfgang Amadeus Deus◙ ﭢ Paul Newmanﻍ Louis Pasteur Picasso
Platão Aristoteles Poe Grigorij Rasputinﻵ Rembrandtﻍ Shakespeare Josef Stalin Teresaﻍ Nicola Tesla שּׁ Twainﻍ Vincent Van Gogh Orson Welles Malcolmﻵ ﻵ Azazel Lúcifer Gang do Lixoﻵ Curupira Kappa Lymantrid Moth Coelho Pascoal
Papai Noel (São Nicolau, Nicolas, NOEL ⌂ הּ) Ж Julian Assange Ж Roussef



Ỗٯلفאָ ףּ⌡۝۞۩
Mantú

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Planalto Antártico – 3. 247 metros sobre o nível do mar - 23 de Dezembro

A nave pousa e derrete a neve macia ao redor do seu perímetro. A superfície contém inscrições em diversos idiomas, riscados ao lado de pictografias primitivas e hieróglifos. Na parte de cima, há uma estrela de quatro pontas preenchida por uma cabala de doze casas que representa os signos do zodíaco.
O caçador extraterrestre salta de dentro da estrutura e cai macio na neve. Com a certeza de estar oculto, volteia o corpo com uma manta escura. Encurva-se e parte em direção as parcas luzes que bruxuleiam no horizonte. A neve floca no ar sem intervalos. Mantú ajoelha e afunda as coxas no terreno até a cintura. Fecha os olhos e pensa a respeito da posição das estrelas, a temperatura, o sabor e a intensidade da neve. Ele segue em frente até beirar um pequeno penhasco. Avista no centro do planalto um castelo de pedras ovais.

Treliças estaqueadas no chão contornam o castelo solitário. Mantú resvala as pontas da cerca com a palma das mãos e, utilizando sua altura, atravessa com facilidade para o lado de dentro. Ao tocar o solo, os pés não afundam como o esperado. Raspa a primeira camada de gelo e observa o próprio reflexo. Está em um lago congelado que contorna todo o planalto. O corpo esguio move-se com a articulação em espiral. Um pequeno tornado alienígena avança rumo ao primeiro portão.

Na torre Pai Natal, o Menino Confete, anão mais novo da família dos Bardos, maneja um binóculo com destreza, acompanhando o movimento do espiral que surge na extremidade norte do lago. Sem tirar o tubo dos olhos, pressiona dois botões no painel e brada a plenos pulmões:

“No extremo da cercania/
um estranho espiral surgia/
Observem nas torres o fenômeno/
acordem quem já dormia/
será que dessa moda/
Noel já sabia?”.


No dormitório Chocolate, ainda sonolentos, os anões Bardos escorregam de suas camas e correm em direção a Maximizada Janela Rotacional.

– Confete não cantou o lado que vem o tal espiral. – Diz Selanofix, erguendo sua ceroula listrada até os joelhos.

– Vamos dar uma panorâmica. – Decide o Eterno Aprendiz Sardentinho.

O teto ergue-se por quinze metros e a sala alarga-se por mais quinze e começa a girar lentamente. Na metade da primeira volta os anões Bardos observam a escuridão da noite. Neste tempo, adentram a sala os duendes de Raiz, ouriçados com a perturbação do dormitório subterrâneo.


– Calem-se, verrugas. Olhem para aquilo. – Impera a anã Cenoura.

Ao completar a rotação, presenciam de frente o tornado.

– Aquilo é uma força da natureza. – Observa Minarete, o duende místico.

De volta à torre Pai Natal, anão Confete aumenta o foco de seu binóculo e pressiona novamente o painel.

“Quero avisar/
Há esta hora/
Melhor acordar/
Aquela coisa tem braços e pernas/
Como pôde nos encontrar?”.


Na Maximizada Janela Rotacional, agora lotada, as famílias discutem.

– Está no limite de entrada.

– Confete tem razão. Um intruso.

– Pode estar perdido.

– Ele é grande. Não parece humano.

– Avisem Noel.

Mantú cessa o avanço. Em frente da passagem principal, fecha os olhos e inspira. Do punho direito cresce um chifre espiralado e pontiagudo. Dois braços de neve imediatamente abraçam o extraterrestre. Um extremo frio congela sua pele lisa e prateada. Mantú liquefaz o corpo e entra por inteiro no grande boneco de neve que o ataca. A bola de neve, com ameixas secas no lugar dos olhos e um ramo de cipreste fazendo às vezes de nariz, salpica neve numa tremedeira involuntária. Ressurge o caçador, banhado de água.
O intruso crava o chifre na porta principal que cintila intensamente junto à energia do espiral de osso. A estrutura vai ao chão com um estalo seco, partida ao meio. No Quarto Magno, Papai Noel termina de colar a última placa de madeira no vagão em forma de gôndola de sua miniatura ferroviária. Ele suspira e retira os pequeninos óculos dourados. Na borda da janela embaçada, uma miniatura de boneco de neve derrete em velocidade.

– Quanta maldade! Não é homem, não é mulher. Não é animal. É o mal, é o mal.

Maximizada Janela Rotacional

– Pelos meus minérios! – Exclama o duende Caracoles. – A criatura extinguiu Bruno Floco de Ameixa.

– E invadiu nosso lar! Armem as defesas.

– Não esperava enfrentar inimigos desde os trigêmeos Mathiesen. – Sussurra Honorário Elias, o vovô pigmeu.

Anões. Centenas de anões. Todos correm de um lado ao outro nos grandes corredores do complexo. Num dos galpões, Esmir, o gigante, puxa com esforço a alavanca “Pão de Mel”. Todas as paredes de aço estremecem e o chão de carpete felpudo ondula com vida própria.


– Começou?

– Acione a esteira do galpão Estrela.

– Os brinquedos estão a salvo!

– Bom trabalho, Esmir.

– Debalexa! Organize os menores e leve-os para as Nozes de Marzipan.

– Confete! Acione a oitava faixa do Vesúvio.

A sinfonia de violino intercala gemidos com trovoadas. A luz do complexo em meio tom.

– Sinistro! Há! Boa peça pregará. Boa peça.

– Silêncio Borma. Agora o temos encurralado.

– Temos, é? 
A descida da alavanca “Pão de Mel” muda a estrutura da fabrica. A música horripilante, o chão que ondula e o labirinto de corredores. Tudo feito para proteger os três corações: Sala de Brinquedos, Sala de Cartas, Casa de Sonhos.

– A coisa vem pela espinha principal. Fiquem atentos!

Mantú anda rápido. A ilusão causada pelo movimento do chão não o perturba. Ele ergue a cabeça ao ouvir uma voz de barítono ecoar pelo corredor, vinda com um vento quente.

“Vá embora. Vá embora.”

E o vento quente aumenta a vazão. O caçador rasga como papel a parede à sua direita, com o poderoso chifre.


Sala de Brinquedos


Imóvel por um longo tempo, Mantú observa o setor onde acabara de entrar. As paredes verdes e aveludadas cospem sem parar muitos brinquedos, dos mais variados, em tamanhos e cores diferentes. Ao tocarem o chão, púrpuro e arenoso, as formas se evanescem por completo. Muito acima, o teto dá luz a um dragão verde e reluzente, que ao contrario da infinidade de brinquedos, não desaparece quando chega à altura de Mantú. Ele envolve o corpo esguio do invasor, soltando vapor em sua face. Mantú firma um dos pés na coxa do monstro e impulsiona o corpo pelas suas costas, riscando a carapaça da criatura com o chifre.
A asa esquerda do dragão atinge o ombro esquerdo de Mantú, e este cai de joelhos. O chifre cintila e é cravado na cauda da fera. Das escamas verdes surge um gladiador com o dorso nu e um elmo negro. As asas recrudescem e em seu lugar brotam braços fortes, manejando uma espada e um machado, respectivamente. Mantú enrola-se na capa e vai de encontro à aparição guerreira. O machado trisca o ventre do alvo e a espada trisca o chifre brilhante.

O gladiador chuta o peito de Mantú e retoma a posição ofensiva, bradando a espada de um lado ao outro. Ele arremessa o machado e salta. Mantú rodopia para trás e crava sua arma na nuca do brutamonte. O sangue espirrado toma forma no ar e se agrupa como um cachorro de três cabeças. A pelagem, os dentes e os olhos; o vermelho predomina intensamente. O Cérbero abocanha com três mandíbulas o dorso do caçador. Ele liquidifica o corpo e se emaranha nos pêlos do selvagem animal, que é absorvido por completo e cuspido como uma bola disforme. Mantú retoma seu corpo trincado.

Blocos grandes e coloridos despencam do teto. Caem aumentando a velocidade e suas configurações complexas. Mantú galga os blocos com destreza até a abertura, mas sua perna esquerda não escapa de uma peça dobrada e fica presa entre as figuras. Resvalando no estranho teto, ele retorce o corpo ao sentir labaredas descendo ao seu lado. O fogo fulgura do pescoço incompleto de um quadrúpede branco que desce pela abertura. A mula lustrosa emite um relincho abafado do peito e a ventosa de fogo arde com intensidade. Em seu lombo há um samurai com a cabeça de uma raposa, manejando quatro adagas. Mantú usa o chifre, que rutila inda mais forte que anteriormente e causa uma explosão que o leva para um patamar acima, perpassando a estranha sala e deixando para trás e em pedaços, todas as ameaças.

Sala de Cartas

O antropomorfo usa os sulcos do trançado de sua arma mágica e cura a pele aberta da perna esquerda. Recomposto, ele afunda os dedos na coluna de cera do escuro ambiente onde acabara de se refugiar. Um tacho de fogo é aceso no topo da coluna. Brilha a vela corpulenta que clareia uma esfera bem definida em seu contorno. 

“Oi papai Noel eu tenho oito anos minha mãe pediu pra eu escrever para o senhor. Eu tinha um boneco do vovô me deu, ele fez com o galho da arvore de jabuticaba. E eu perdi ele. Se o senhor puder achar eu queria mostrar pra mamãe. Eu não queria perder o boneco que o vovô deu. O vovô já foi para o céu. Eu sempre me comporto o ano todo, ai nesse ano papai Noel o senhor pode mandar o boneco junto com o carrinho de ferro que o Pedro da escola ganhou do tio dele eu quero um pra brincar junto e com o boneco também. Ta bom? Obrigado papai Noel .
Feliz Natal.
Lucas “

“ Este ano eu vou acordar no natal e ver você papai Noel. Daí não fica com medo por que vai ser eu. E eu quero uma arma igual a que minha mãe mexe no quarto dela. Daí meu pai disse que os vermes do vizinho que fala engraçado não vai nunca atrás de mim. Beijo papai Noel .
Alécio
12, novembro 1972”

“ Pai Natal , boa noite para o senhor. Sei que mora muito longe e é muito frio e eu não quero te aborrecer. Minha irmã ta com muito frio também. A mamãe colocou ela numa caixa. Você pode dar uma coberta pra ela e eu quero uma boneca.
De Ana.”

“São Nicolau, traz tua luz generosa nesta passagem tão bela. Que o amor espalhe sua benção por toda a eternidade. Amém.

Cristina P. Gaudério

1898"


Papai Noel termina de ler a última carta e a joga na imensa pilha ao seu lado. Sua aparência é de um adolescente de cabelos castanhos despenteados. Os olhos estão mareados por conta da difícil leitura das letras miúdas. Ele levanta de cima de um monte desorganizado de envelopes e escorrega para baixo.
A voz de Mantú enlaça a obscura sala:

– Creio poder afirmar, sem arrogância e com a devida humildade, que a minha mensagem e os meus métodos são válidos, em sua essência, para todo o mundo. ¹

A voz de Papai Noel responde em tom maior e apaziguador:

– Em uma vasilha, faça uma bola rasa com cem gramas de farinha de trigo, o fermento e um pouquinho de água. Deixe descansar por quinze minutos. Após o descanso, adicione frutas secas e as uvas e faça uma massa bem macia. Deixe descansar uma vez mais, coberta por um pano. Após este descanso, faça bolas cheias e fofas, coloque em formas e deixe descansar novamente até quase atingir o dobro do tamanho. Após tudo pronto, pegue uma lâmina, faça os cortes em formato de cruz em cima de cada panetone, puxe as abinhas para fora e coloque por cima uma colherinha de manteiga sem sal. Leve para assar em uma forma de papel. Reparta com os amigos. Pois é de amigos que tudo se trata.

Mantú passa os dedos afiados sobre o queixo pontiagudo, ressabiado com o assunto.

– O tumulto é a linguagem daqueles que ninguém entende. Se a história ensina alguma coisa, é que o mal é difícil de vencer, tem uma resistência fanática e jamais cede por vontade própria. ²

Noel altera sua forma humana, de um jovem esbelto, o corpo assume feições de um adulto corpulento; de rosto corado, os olhos verdes e fulgurantes a fitarem com grande luz o impiedoso invasor.


– Misture leite condensado e leite de vaca. Bata na tigela, com um garfo, os ovos de galinha selvagem. Esquente uma panela de ferro cheia com óleo, mas não deixe ficar tão quente. Passe as fatias de pão amanhecido na mistura de leite e depois nos ovos batidos. Frite até dourar de ambos os lados. Passe no açúcar com canela. Agradeça seus pais por tudo que você é e coma com a gula livre de remorsos.

O caçador extraterrestre se atraca a coluna de cera da vela gigante e a derruba em direção as cartas.

– Eu acredito em tudo, até que seja contestado. Assim, eu acredito nas fadas, nos mitos e em dragões. Tudo existe, mesmo se estiver só em sua mente. Quem é que poderá dizer que os sonhos e os pesadelos não são tão reais quanto o aqui e o agora? ³

Papai Noel sopra a ponta em chamas da vela antes dela cair por sobre os papéis amarelados.

– Tempere um gordo Peru com todos os temperos que tiver em seu jardim. Deixe-o, já de véspera, enterrado na neve, de molho nos temperos, virando-o a cada quatro horas. No dia seguinte, prepare o recheio com castanhas portuguesas cozidas, uvas passas, manteiga, farinha, miúdos e recheie o peru. Com cuidado para não encher demais o papo, costurando as cavidades. Prenda as pernas do peru uma na outra, decorando com papel recortado, preso com uma linha. Besunte-o todo com manteiga e o ponha na assadeira, de papo para cima. Cubra todo o peito com fatias de bacon divino. Regue com vinho branco italiano. Cubra com um papel alumínio e leve a assar em forno de lenha. Após uma hora e meia, descubra-o, regue com o caldo da assadeira e volte ao forno ainda coberto. Uma hora depois, descubra-o e deixe até que tome um tom dourado escuro, regando, a cada quinze minutos, com o caldo da assadeira.

Papai Noel retira uma pequena trouxa com Pó Saltitante e a arremessa no chão. Suas botas brilhantes sapateiam e toda a grande barriga de Noel chacoalha de encontro a Mantú. Os dois rolam pelo chão com o impacto. Noel espreme o caçador contra o chão. O corpo cinza derrete no solo de cartas e desaparece. Uma passagem em arco, feita de paçoca, abre-se e do recinto reluz um jogo de cores embaralhadas. As renas gigantes avançam em marcha e são interrompidas pela voz de seu amigo:

– Afastem-se. Está dentro de mim.

Toda a família natalina se reúne na Casa de Sonhos.

– Venha pra cá, Nicolas. – Grita Jenipapo, o duende da Folha.

Casa de Sonhos

Papai Noel retira outra trouxa da cinta e salpica Pirlinpinpin pelo corpo. Sua fisionomia muda diversas vezes. Ora Noel, ora Mantú, ora duende, ora anão. Numa luta solitária de feições retorcidas, ele flutua até a Casa de Sonhos.

– Tranquem a porta! Isso acaba aqui! – Exclama Selanofix, afastando os presentes em um grande circulo.

O chifre no punho de Mantú rasga o peito de Noel e o corpo parasita cambaleia para fora. Papai Noel emana uma luz branca de todo o corpo, recompondo-se por inteiro. Sua mão firme agarra o chifre em espiral.

– Teu pensamento revela o extremo da abominação.

Mantú urra de dor enquanto o chifre vibra com um ruído de pistão vindo de dentro do seu corpo extraterrestre. O punho é destroçado com o nascimento de um crânio comprido. O antebraço é partido ao meio e o corte sobe até o ombro. A forma presa ao chifre revela uma cabeça de cor rosa e olhos de um azul profundo. O sangue negro do caçador jorra sobre Noel. Renasce o unicórnio, abrindo Mantú ao meio.
– Bem vindo à vida. Uma vez mais, magnífico Vurukatte.

Como uma harpa mágica, o unicórnio relincha, inclinando-se em reverência ao Papai Noel.

– Nicolas, encontraram uma nave. – Desabafa Debalexa, esbaforida.

Anões, duendes e gigantes circundam o corpo destroçado de Mantú.

– Chegamos à véspera de Natal, família querida. Empacotem a carcaça da criatura e carreguem meu trenó. Quando eu retornar, exploraremos a nave. Refaçam Bruno Floco de Ameixa e desliguem as armadilhas do castelo. O pior passou. Não me esperem para a ceia. Vou jantar com o Patinha de neve.

Papai Noel retoma sua forma de criança e sai correndo pelos corredores, desejando Feliz Natal a todos que lá se encontram.

¹ Mahatma Gandhi

² Martin Luther King
³ John Lennon

sábado, 7 de dezembro de 2013

Olhos de adágio





Era minha última entrega de uma intimação judicial naquele dia. Faltavam poucos meses para sair de uma vez por todas do tribunal de justiça e finalmente aposentar minha carcaça. A intimação fora endereçada para Gregori Náfilas Enoque, um produtor musical, dono do passe de uma dúzia das mais meteóricas cantoras de salão àquela altura. O sujeito era também agenciador de novos talentos, um figurão viciado em calmantes, de temperamento forte e aparência singular. Questionei meu superior sobre a marcação no relatório em que lia, estavam circuladas em vermelho as palavras “aparência singular”; e ele apenas apontou para o telefone em minha mesa. Imediatamente liguei para Virgilio Camelo, o detetive responsável por aqueles dados. Ele lembrou imediatamente do motivo do destaque.            

Chico, esse tal de Gregori Náfilas, esse cara é suspeito de agressão sexual contra pelo menos duas cantoras, basicamente este é o motivo de você ir entregar a intimação judicial. Os promotores já estão ansiosos, com três testemunhas guardadinhas pra queimar o homem. Por conta da influencia do sujeito, as coisas estão correndo de modo discreto. Você vai, entrega e cai fora sem dar um pio.     

Eu entendi essa parte, Camelo. Quero saber sobre a singularidade.   

O cara é enorme. Enormemente gordo. Um obeso estapafúrdio.          

Você deveria ter descrito isso.           

Agora está sabendo. Você nunca vai perder esse cara de vista. Até segui ele por uns dias, bem de perto. Foi divertido.                                                                       

Tudo bem, Camelo, já entendi.          

Boa sorte, Chico.          

 Saí da tribuna e um policial chamado Jeferson Ferro me aguardava nas escadarias, um jovem franzino, sempre com a mão direita reticente em direção ao coldre.   

O que é isso, rapaz? Vai sacar o revólver? 

Não, não senhor. Desculpe.  

Então relaxe o braço.   

Está relaxado, senhor. Desculpe.     

Pare de se desculpar. Você se daria bem no velho oeste, rapaz.          

Como praxe, apesar de não ser obrigatório, ele me acompanharia até o momento da entrega do envelope. Só o fato de estar com alguém de distintivo e uniforme, acalmava as coisas e a verdade era que entregar intimações nunca dera qualquer problema, pelo menos não em meu distrito. E, pelo menos, não enquanto eu também carregava uma arma. Uma arma ilegal, mas passável ao olhar borrado dos colegas de justiça.      

Quinta feira abafada de verão, final de expediente e começo da noite, nós estávamos num endereço que fervilhava com a classe alta dos jovens artistas e agitadores culturais. Artistas que vagavam pelas madrugadas nos bares de bossa, acendendo longos cigarros para madames escorregadias e ébrias, tanto quanto eles próprios. Antes da noite realmente abraçar essas figuras e em um andar muito acima daquele onde se perpetuavam as longas galerias de entretenimento, precisamente no vigésimo andar, estava o meu destinatário.

O hall de entrada do edifício era portentoso, toda a decoração assimilava tons de vinho e azul escuro e um balcão de mármore tomava uma ponta a outra do local. Uma parte dos funcionários registravam os visitantes, outra parte ciceroneava o fluxo que ia aos restaurantes e salões musicais.            

É grande o suficiente pra esse cara Falei sozinho enquanto caminhava em direção a uma das recepcionistas.       

Pra quem, senhor? Perguntou-me Jeferson, colado em meu ombro.         

Apontei para o envelope. 

O destinatário.   

Encostei-me em uma das pontas do balcão, com o semblante cansado, tentando passar certa austeridade para a atendente, ela mal olhou para minha cara enrugada.           

Não sei se o senhor Enóque irá recebê-lo, ele pediu para que ninguém mais subisse, além da senhorita Barbara Cinnamon. Informou com petulância a pequena recepcionista dos cabelos repuxados.

Vou chamar nosso gerente.   

Então ele estava acompanhado da musa, cantora maravilhosa, meu sonho de consumo. Isso era um motivo a mais para chegar lá o quanto antes. Eu não poderia passar por nenhuma chateação a partir daquele momento.             

Não importa em qual horário eu venha, pequena, a lei exige o cumprimento da entrega, sem o seu empecilho. Segundo, não precisa anunciar, ou quem sabe ele vai fugir. Apesar quê, nós dois sabemos que isso não vai acontecer. – Bati com o envelope na mesa – Acho que você não quer uma noite amarga de serviço tentando me provocar com a ajuda de um gerente bobalhão que vai escutar a mesma coisa que acabo de te falar, você quer?           

Cobertura, senhor. Mil e um. – Suspirou a recepcionista ajeitando os óculos para ler meu nome no distintivo que eu esfregava em seu nariz. — Escutem vocês dois, aprendam que sempre é possível subornar o ascensorista e assim evitar tornar a minha noite de serviço, amarga. Tá bom? Passar bem e boa noite.     

Eu pensei que não iria simpatizar com você, pequena. Gostei. Vamos, Jeferson. Por que está com a mão no revólver?   

O ascensorista girou uma chave especial para liberar o acesso ao último andar. Ele sorriu por toda a subida, sem tirar os olhos de nós dois. Eu estava sem grana para suborno e sem paciência para gorjetas. No entanto, subia uma leve graça em mim, por saber da pequena rusga corrupta entre ele e a recepcionista. Ambos esperando ou uma gorjeta ou um suborno. Danem-se os dois.             

Cobertura, cavalheiros. Boa noite, cavalheiros. Até breve, cavalheiros.          

Caberia todo um batalhão de jornalistas com seus equipamentos naquele corredor acarpetado, caso um escândalo irrompesse para o lado do produtor. Eu conheço bastante sobre música. Sou um apaixonado por cantoras solitárias com vozes embargantes. Penélope Húdus, Silvia Star, Francine Docinho, Sandra Lear Mossí, Barbara Cinnamon, dentre outras, todas com tanta potência, todas em minha prateleira, espalhadas musicalmente nos LP’s. Minha pasta de recortes de jornal sobre essas divas iria ganhar mais riqueza com minhas impressões sobre um breve encontro com um desses peixes podres que as rondam na noite, bancando toda a sorte de luxúria. O suposto predador sexual deveria estar confortável, aliviando o calor com um champanhe dos mais caros. A porta do apartamento mil estava aberta e um homem calvo num roupão de veludo azul olhava em direção ao fim do caminho.        

Boa noite, senhor. Algum problema mais pra frente?      

O homem calvo nos olhou perifericamente e jogou o nariz para frente, como que apontando.          

Eu não sei. Acabo de escutar um estouro. 

Bati com a mão na parede.          

As paredes parecem bem grossas. Uma garrafa de champanhe não faz tanto estardalhaço. Carreguei ironia na voz.     

O homem então se virou para nós e, firmando o laço do roupão, gaguejou:       

Então é o que ambos pensamos e parece que a policia já está na área Olhou com desprezo para Jeferson O preço que eu pago nessa porcaria, ainda têm dessas.       

Fechou a porta em nossa cara. Jeferson tomou minha frente, com o braço estendido e a arma chacoalhando na mão. Seu rosto alternava as expressões, entre a rudeza de uma estátua militar e o cacoete nervoso de um virgem. Inicialmente, demonstrei confiar no novato e assim fomos para o apartamento mil e um, com ele na dianteira. Poucos passos antes, a porta abriu e um vulto no vão pareceu saltar novamente para dentro. A porta foi rapidamente fechada. Apertei o braço de Jeferson de modo gentil, descendo a certo custo sua empunhadura.     

Pare um pouco, jovem. Vamos ter cautela. Está com o rádio? Chame alguns reforços.

Ele parecia ter se atrapalhado com minha interrupção e mesmo com minha cara feia em sua frente, tentava não tirar os olhos da porta Veja só Abri o paletó o suficiente para que ele pudesse ver meu revolver no coldre, junto ao coração. Eu cuido das coisas enquanto você desce até a recepção. Chame sua turma e, por favor, ligue para o Detetive Camelo. Se minha aspereza fizesse efeito, ficaria ao menos cara a cara com a cantora.    

Senhor, como autoridade maior, eu preciso ficar no local, você pode fazer isso.      

Enquanto ele falava, eu batia na porta por três vezes, de modo firme. O policial recuou surpreso com as batidas.         

Tarde demais. Vá logo fazer isso, eu seguro as coisas aqui. Ou você pode começar uma negociação, seja lá o que for que tenha ocorrido aqui. Vá — Empurrei-o nervosamente — Ora, vamos, inventamos uma história depois e você sai por cima — Aliviei.       

Pela fresta inferior da porta passava um facho de luz. Bati novamente. O facho de luz sumiu e então achei melhor ficar de lado, diminuindo meu corpo como alvo, caso quisessem varar balas por ele. É uma fantasia comum, passar o tempo todo na expectativa de uma chuva de balas, apesar de que, recebo-as de verdade é na forma de palavrões. Acendi um cigarro e baforei fumaça sobre a madeira, esperando que ela penetrasse como um aviso. Ser um oficial de justiça, uma espécie de garoto de recados de um juiz, nunca foi das profissões mais perigosas, mas ao menos era agitada. A pose que assumi naquele momento, vinha atada ao corpo da profissão. De qualquer modo, algumas vezes, era melhor molhar as canelas no lodo dos outros, garantido serviço completo. Apesar de que, em minha idade, quase na aposentadoria, os pontos com os juízes já não contavam e nem importavam mais. Credito isso a minha personalidade ranzinza de justiceiro. Dane-se essa droga.

Senhor Gregori Náfilas Enoque? Francisco Carpa, oficial de justiça. Incumbido da entrega de uma intimação. Preciso da sua assinatura, preferencialmente antes das oito da noite, assim o expediente é respeitado. Poderia por favor, apressar o meu lado?

Soltei mais uma longa baforada de fumaça. E uma voz rouca subiu, vinda de longe, pelo lado de dentro.            

Então... Entre logo e vamos acabar com isto.         

Girei a maçaneta e abri toda a porta de uma só vez. A luz do corredor projetou minha sombra no ambiente. A claridade somou-se a apenas dois abajures, um deles sobre uma mesa ao lado de um telefone preto, o outro, mais alto, em uma espécie de pedestal, ao lado da figura distinta de Enoque. Não o vi por completo, mesmo com todo o tamanho daquele homem. Encerravam-se mais sombras do que luz naquela que parecia uma espécie de sala conjugada com um escritório. Calculei vinte passos até ele, sentado numa poltrona de couro negro que pareceu muito confortável, guardando aquela morbidez de gordura. Sai da soleira e me adiantei o suficiente para livrar a porta, levei o envelope com a intimação até a linha da minha cintura, deixei a mão direita livre. Pedi licença e fechei a porta com o pé, suavemente. Próxima à janela, que estava com as cortinas semicerradas, havia uma mesa de mogno escuro com uma pequena cadeira, na parede contrária havia uma pilha de dinheiro, ao lado de um cofre entreaberto e embutido por entre duas prateleiras saltadas do que parecia uma espécie de biblioteca, mesclando livros com discos. Atrás de Enoque, percebi o brilho das garrafas de um bar e uma mesinha apoiando uma vitrola antiquada, que pude definir pelo dourado de sua cornucópia e o bonito som que ressoava em volume mediano. A música eriçou minha nuca e então, neste momento, senti a presença de uma segunda pessoa, parada a cerca de um metro, do meu lado direito.     

No rol das cantoras famosas, sem dúvidas, Barbara Cinnamon havia sido por muitos anos a melhor de todas. Tinha dois compactos dela em minha coleção. Por muitas vezes cantarolei no caminho do trabalho as suas baladas sôfregas e amorosas, “Ninguém é obrigado a fazer o impossível” e “Noite finda sempre linda”. E foi nela em quem parei meu olhar assustado, naquela meia penumbra. Loira de corpo esguio, pele dourada contrastando com o vestido longo, todo prateado, com riscos que lembravam pequenos cometas cintilantes. Lábios coloridos de um vermelho intenso, nariz empinado, brilhando com uma maquilagem também rosácea, delineada até a altura das finas sobrancelhas, arqueadas num sorriso invertido, suportando aquele olhar. Um olhar de íris verde, que mirava em um ponto fixo, do outro lado do ambiente. Sua posição é que me partira o coração naquele momento. Estava com as costas coladas em um espelho que recheava toda a parede, terminando pouco antes da porta de entrada. Os joelhos virados, um de frente para o outro, e os saltos firmemente cravados no carpete enrugado. Claramente havia tombado, obviamente por conta do furo em seu dorso, um ponto cor de vinho no meio do avultado decote. Um filete de sangue descia lentamente, gotejando no chão.         

Toda essa percepção durou não mais que alguns segundos. Aprumei minha postura, redobrando a atenção, neste ponto, a música se fez mais presente. Rodava suas notas no ar desde o momento em que bati à porta, aquela melodia vazando sussurrada. No entanto, eu a relevei, não fez presença em minha cabeça até aquele momento, as preocupações eram somáticas. Mas agora, sabendo da tragédia ao meu lado, as ligações firmaram-se.  

“Ninguém é obrigado a fazer o impossível. Lutamos todo dia, esperamos lado a lado. Eu quero que você nunca me esqueça. Deu tanto trabalho, te ter, merecer. Assim é pra mim, tudo é um sonho feliz, a chuva a cair, apenas as penas, o choro correndo e o vento assovia, sorria, sorria, sorria.”


— Você pode ter duas escolhas razoáveis vindas de mim. Pode levantar sua bunda gorda e contar o que aconteceu na altura dos meus olhos ou pode apenas dizer que a matou e então fechar os olhos enquanto eu miro em sua cabeça.        

Eu estava nervoso, irracionalmente nervoso. Mesmo sem resposta eu poderia matar ele.      

— Espere, por favor. Você não tem ideia. Você não sabe nada a meu respeito, eu não faria , não faria... Nunca, jamais. Eu tenho contatos, sou um homem milionário.      

Andei até a mesa de escritório e nela arremessei o envelope com a intimação. Com estes poucos passos, pude ver melhor aquela figura. Um homem nojento, vazando suor de todos os poros, com um terno riscado em pleno verão e a braguilha escancarada com um contorno repugnante de seu se
xo a mostra. Graças a Deus que aquilo não estava claro aos meus olhos.      

— Você usou as palavras erradas, seu desgraçado. Acha que vou te dar tempo para a policia chegar até aqui?

Ele recrudesceu na poltrona e o couro rangeu muito alto. Enoque gemeu por alguns segundos antes de tentar aplacar minha fúria.           

— Por favor, você não sabe o que aconteceu aqui. Veja, leve o dinheiro embora contigo. Eu assino a intimação, vamos esquecer isso. Por favor, seja rápido. Você não compreende.           

Por um momento, mesmo num insano espiral vingativo, o tom de urgência naquela voz pastosa me pôs novamente a raciocinar. Recuei até voltar ao espelho, agora ao lado de Barbara. Olhei rapidamente para ela, os olhos ainda estáticos, julguei estar morta. Olhei para o produtor musical, sua boca balbuciava, ressoava um gemido e a poltrona rangendo, tudo sobreposto a canção
que chegava aos versos finais na vitrola.     

“Ninguém é obrigado a fazer o impossível. Olhar nos teus olhos vazios. Eu sei que está lá, o olho é a alma, a calma perdida, agora partida, aos cacos ferida. Me olhe, me olhe, não esqueça que a vida o vento assovia, sorria, sorria, sorria.”       
           
— Você falou novamente as palavras erradas. Vou lhe dar mais uma chance. Aproveite.

Saquei minha arma e imediatamente bati com o cabo no espelho, partindo-o por inteiro. Não chegou a desmoronar em mil pedaços como imaginei em minha cabeça, mas ficou inteiramente rachado.      Ergui a palma das mãos com a arma pensa entre os dedos, sacudi-as no ar, como que esperando algo do sujeito. Então ele pareceu compreender o que fiz e, sem voz, soletrou sua mensagem. Pude então ler seus lábios, que foram breves e desesperadamente trêmulos.       

“Ele/está/atrás/de/mim”.    

O mais rápido que minhas pernas puderam, corri em direção a ele, o revolver teso na frente, o corpo indo de lado, reflexo da “chuva de balas”. Passei Enoque e então saltei, girando o ombro e mirando na escuridão total que reinava por detrás daquele monumento vivo. Meu calculo exagerado acabou por me arremessar na prateleira de bebidas. Cuspindo Bourbon que se espatifara em minha cabeça, chacoalhava a arma enquanto balbuciava palavras de ordem. Aquela não era minha vida, realmente. Do menor dos males, não havia nada atrás daquele homem obeso, grudado no assento. Constatara isso com toda certeza, após puxar com um dos pés o pedestal do abajur.

 — Você está me fazendo de palhaço, seu filho da puta. — Bufei de joelhos, pronto a me levantar.

Enoque gemeu mais alto do que antes, pus-me de pé e estava pronto a esmurrar seu pescoço quando um tiro abafado foi disparado. A vitrola tombada ajudou a estimular o silencio sepulcral que se seguiu. Fiquei ao lado de Enoque e então, após ver a marca da bala em sua barriga, voltei com tudo para a estante de bebidas quebradas. Naquele momento eu precisava de um abrigo melhor, mas nem ao menos fazia ideia de onde estava escondida uma terceira pessoa. Se aquilo já não era estimulo suficiente para um enfarto, a porta da frente foi estourada.

— Largue a arma. Saia das sombras.    

Pelo susto, larguei o revolver no chão.

— Sou eu, Camelo. Chico.          

O detetive baixou sua guarda e abriu espaço para Jeferson entrar. De fora vinha o murmúrio de mais policiais.       

— Este, sentado bem à moda, é o senhor Gregori Náfilas Enoque. E esta ao lado de vocês, infelizmente, é a cantora, a linda, senhorita Barbara Cinnamon.   

— Sim, os reconheço, Chico. Mas, também infelizmente, a cantora Barbara Cinnamon, não é, ou era, aparentemente, senhorita. É, ou era, uma senhora.  

Pendi os lábios, secos do recente pavor e stress ao qual havia me submetido, respondendo na defensiva.                

— É ou era, veja só, ela está morta. Já era. Não importa, Camelo, senhora ou senhorita.       

O detetive passou a mão na barba rala e devolveu:  

— Importa muito, Chico. Pois ela era mulher de um escroque safado, um estelionatário chamado Juliano Frei, conhecido nos inferninhos como Fininho.  E é fácil aumentar a importância deste vagabundo. Pois foi só apertar o pescoço do ascensorista, que não parava de rir de nossa cara no elevador, que o bossa mole desembuchou. Contando a aventura de um cara magérrimo que chegara hoje no final da tarde com duas notas de cem cruzados pedindo pra ser introduzido sem rodeios diretamente ao último andar. Pouco depois de uma madame linda e cheirosa subir e pouco antes de um velhaco mal humorado e um policial com cara de bobo também subirem. Palavras dele, juro. Tá bom pra você, Chico?           


Minha mente vagava, tentando conectar a informação. Jeferson caminhou até o meio da sala e acendeu a luz principal do ambiente. Na claridade, olhei pela última vez para aqueles olhos enormes e verdes do outro lado da sala        . Eles lentamente se moveram, suavemente, pouco antes das pálpebras descerem, aqueles olhos fixaram-se em um novo ponto. Na barriga furada de Enoque. Acompanhei aquela direção, voltei minha visão para Barbara e acima de sua cabeça loira, num dos trincos do espelho, brilhou o cano de um revolver, saindo debaixo do braço direito do cadáver obeso.            

— Saiam daí. Vai atirar, ele está...          

Uma chuva de balas varou a sala. Jeferson havia se jogado no chão e o detetive Camelo pulado para fora. O espelho finalmente vinha ao chão com seus milhares de cacos. Empunhei o revolver novamente e disparei três tiros nas costas da poltrona de couro.
O show acabava ali. Logo entrou uma multidão de policiais e detetives.          

— Venha, Jeferson. Levante-se. Hoje foi seu dia de sorte.  

Quatro homens levantaram o cadáver de Gregori Náfilas Enoque. O marido, absurdamente marido daquela estrela, um homem mirrado, violentamente feio eestava destripado pelos meus três tiros. Jeferson o descolou do couro, banhado em duplo suor, dele e do seu escudo humano.        

— Que ideia, hein, Chico? Esconder-se na bunda de um gordão. Porra, vemos de tudo nessa profissão.            

— Na sua profissão, Camelo. Na minha, não.            

Ele apertou meu ombro com camaradagem.   

— Você até deu tiro hoje, Chico. Que eu saiba, na sua vida, só tinha disparado outras quatro vezes.                        

— Imagina, cara. — Ri sem graça, correndo os olhos pelos policiais que faziam o isolamento da cena. — Foram apenas outras duas vezes.                     

— Contando com o ascensorista?         

Rimos juntos.          

— Ah, sim. O ascensorista será agora na descida.
   



*****!

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Levy Fidelix e os universos paralelos




Levy Fidelix constrói aerocafé expresso por 0,50 centavos e faz sucesso em SP

Levy Fidelix implementa aerobol como esporte oficial no Brasil

Levy Fidelix inaugura casa erótica com performances de aerosexo

Levy Fidelix reclama direitos autorais na criação do termo "aerolitos"

Levy Fidelix, autor de "Harry Potter, o aerofilosofal" está animado com Hollywood

Levy Fidelix descarta aerotrem. "Nunca vai ser" - desabafa em entrevista.

Levy Fidelix reinaugura o aeroanta em SP.

Levy Fidelix é julgado inocente no processo sobre o descarte de aerossol na atmosfera.

Levy Fidelix busca esta noite recuperar o cinturão das aerolutas contra Enéas, o Carneiro.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Danoninho

1980 - Na churrascaria "Acerta na Carne" da estrada M. Boi Mirim, o garção servia de sobremesa Danoninho.

"Madame, um Danoninho vale por um bifinho!"

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sexo oral

O uso de frases elaboradas em língua portuguesa para a prática do sexo oral
- Tomás Hehe Ibera -

(Página 23)

Homem > Mulher

"É ele, o Leleco lelé, levando bricabraque no Chevette que zuni: "vrum, vrum".

Mulher > Homem

"Amo mamão assado, jujuba e marmelada, amo mais que chuchu na chuva".

Assuntos antes do bar fechar

•(ㅅ)• Escola do Cervejismo Mágico •(ㅅ)•

◣- Assuntos antes do bar fechar ◢-

◢◢

O alho tem odor quando está sozinho na floresta?

Não seria o correto perguntar: "Se uma árvore cai na floresta, mas não há ninguém por perto, ela faz barulho"?

Aí está a resposta. A arvore cai por conta do cheiro forte do alho. E faz barulho, pois ela odeia alho.

Amigo, isso até que faz sentido.

Sim, faz.

***

Suponhamos que você chame um sujeito de janota, só que o faz de modo discreto. Ele já nota ou passa despercebido?

Suponhamos que eu não saiba nem o que significa janota.

***

Ardeu?

Ar, er, ir, or, ur, todos deram.

***


Manda uma torre de cinco litros de saideira.

Ah, e manda não cobrar, vai ser da casa, não vai não?


*
*

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Abaçaí / abacalhoar / Abacamartado / Abaçanado / Abaçanar


Urerê agachou na beira do rio para beber água. Sentiu uma presença em suas costas. Por intuição, mergulhou no rio sem olhar para trás. Boiando no trecho mais calmo das águas, viu outro indio no mesmo local onde havia agachado.
"Quem é?" Gritou.
"Sou eu, o seu perseguidor."
"Suma. Suma daqui. Você é um Abaçaí."
"Pegue na água esse peixe. Vou abacalhoar ele para o jantar."
Urerê sentiu então um peixe roçar sua mão submersa. Prontamente o afugentou e então nadou até a margem oposta. Saiu da água e correu para a mata fechada. Topou com o seringueiro Matias, único morador branco da região. Ele segurava um tronco de madeira abacamartado.
"Calma lá, indio. Seu lado de caça é pra lá. Pode voltar."
"Um Abaçaí me persegue."
"Não quero confronto tribal aqui. Volte!"
"Me dá o tronco. Estou de mãos vazias."
O seringueiro Matias entregou a madeira para Urerê, esperando dar fim a chateação. De volta a margem, viu o Abaçaí no mesmo ponto, deitado sobre folhas secas. Então apontou o tronco abacamartado e gritou: "Vou te matar com o chumbo". O Abaçaí pôs-se de pé.
"Acha que sou como a anta? Não caio nessa. É truque de homem branco. Fraco."
Matias surge da mata, vindo para conferir se o indio retornara para o lado certo do rio.
"Isso é ridiculo. Vamos, nade para o outro lado."
Furioso, o Abaçaí rogou uma praga: "Como o abaçanado de minha pele, vai o homem branco abaçanar. Abaçanado então, te seguirei por toda a vida, até enlouquecer!"
Matias retirou um revolver de sua cintura e atirou em Urerê. Mirou no Abaçaí e atirou mais duas vezes. Urerê tombou sem vida dentro do rio. Abaçaí urrou, com um ferimento no estomago. Mancou para o meio da mata. Matias guardou a arma, satisfeito. Apenas no fim do dia, em sau casa, viu com horror no espelho, seu rosto abaçanado.

ababila / ababocado / ababelado / ababelar / ababil



Mussá fitava o horizonte dourado do deserto. Daila, a esposa, agachou-se ao seu lado, na varanda do quarto, preocupada com o silêncio do marido.
"Mussá, me conte sua preocupação? O que vem do infinito das areias?"
Sem tirar os olhos do longinquo limite de visão, limitou-se a pedir um jarro de água.
Daila encheu dois copos. Um para si e o outro colocou entre os dedos do homem. Eis que Mussá agitou-se e o copo perdeu-se no chão.
"Mussá, Mussá, o que ocorre?"
Ele apontou para a frente, trêmulo, as faces vermelhas.
"Ababil, um Ababil, Daila. Olhe! Alá condena nossas vidas de pecado."
O copo de Daila também foi ao chão. Juntos viram nascer, no horizonte do Saara, um ciclone de areia, uma imensa coluna ababelada e escura, recheada de trovões retumbando em seu interior.
"Vamos descer, vamos correr"
"Vamos morrer, Mussá".
No quintal, puderam ver a sombra do topo da coluna abraçando as paredes da casa. E então essa coluna dividiu-se em duas e o casal se abraçou ababocado pelo som violento que pousava no telhado.
"Daila, são ababil e ababila... Suba na..."
O casal levantou vôo no turbilhão ensandecido dos demônios ianques, ababelaram seus corpos com a força do vento.
"Burn the house down... big bad bada boom... soldier!"
Apache Thunder Thor e Apache Tomahawk completaram a missão e retornaram para base. Mussá e Daila tornaram-se apenas vestigios, carregados por Alá, nas asas mortais de Ababil e Ababila.

aal/ aalclim / aaleniano / aalênio / aaquênio /



Três irmãos, Aaleniano, Aalênio, Aaquênio, após arrastarem-se pelas areias escaldantes do deserto, toparam com um camelo morto. A carcaça do animal estava comida pela metade. Aalênio cheirou a carne rasgada e avisou seus irmãos de que ainda estava fresca. Os três beberam do sangue e comeram da carne, desesperados que estavam pelo castigo do Saara. Aaquênio ergueu a cabeça e cuspiu tudo o que mastigava. Com terrivel dor, espargiu  pelas areias. Aalênio cheirou mais uma vez a carne, provou mais uma vez o sangue. Olhou então para Aaleniano e disse: "Este camelo foi abatido por mercadores da morte. Dos restos que não mais lhes serviam, misturaram pedaços de aalclim e então besuntaram com aal para mascarar o forte cheiro de veneno"! Ao término da fala, a garganta em brasa, o sangue vazando dos olhos, Aalênio viu mortos os irmãos e enterrou todo seu corpo para dentro da carcaça, de modo a servir de aviso para outros incautos.

aba / ababa/ ababadados / ababadar / ababaia

“Entorta a aba do boné, moleque! Aba reta é do capeta”.
“Mas mãe...”
“Fica quieto. Me passa a ababa que vou fazer um chorume pra Jesus”.
“Mãe, Jesus não come gordura!”.
A mãe deu um safanão na cabeça do filho que imediatamente a aba do boné voltou a ser reta.
“Entorta essa aba, criatura”.
O garoto ajoelhou aos pés da mãe e apertou as mãos no ababado do vestido dominical.
“Tu quer ababadar mais ainda o ababado, ô disgraça”?
“Mãe, vê se perdoa eu”!
Gentilmente a mãe acariciou o rosto do garoto e entortou novamente a aba do boné que teimosamente voltara à forma de prancha.
“Felipino, amor da mamãe, te perdoo. Agora vá na ababaia e pega uns frutos verdes que vou terminar o chorume de Jesus”.
“Mas mãe, Jesus não come gor...”
E tomou outro safanão. O garoto seguiu tristonho para a ababaia, com a aba reta novamente.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Quem lançou o boato?



Estavam na ronda do meio dia, rosnando com fome, o delegado Patranha junto com o policial Dinamar Silva Cunha, na Veraneio 86, única naquele distrito modesto. Quando foram parados pelo corpo corpulento do Aparecido, vulgo Dota. Após a brusca freada, desceram os homens da lei para lascar safanão na bochecha vermelha do Dota, mas, experiente como era, delegado Patranha notou a extrema urgência que os olhos do sujeito passavam e interrompeu a braçada.

"O quê que tá pegando, gordão?"

"É... o quê que tá pegando, gordão?"

"Cala boca, Dinamar. Eu faço o questionário."

"... Claro, claro. Perdão, doutor."

"Desembucha, Dota."

"Lançaram... senhor... lançaram por aí... Lançaram um boato cabeludo."

"Porra, e o que disseram?"

"Senhor... não fui eu, entende? Escutei logo cedo o boato passando."

"Fala, caralho."

"Que o delegado Patranha na verdade é delegado Peitinho."

O delegado tombou a cabeça para o lado para derramar mais fundo aquelas palavras em seu ouvido. Sacou do trezoitão e pipocou três tiros para o alto. E naquelas bandas, três tiros para o alto era sinal de que a coisa estava na chapa quente.

"Dinamar, fecha a rua com a caranga. Quem passar aqui você vai encostando na parede e vamos espremer até descolar o assovio que pariu o boato. Esse filho da puta vai aparecer rapidinho. Caceta!"

O policial arrepiou com tudo na entrada da rua enquanto o Dota era o primeiro a ser posto pelo delegado no paredão. Do outro lado da rua, vazavam no 'pé-dois' quatro mamulengos que apertavam suas marmitas, sendo todos frisados pela pontaria e o berro do Patranha. Neste movimento, chegava o Dinamar com uma fila indiana com nove mal encarados e cinco mal encaradas.

"Muito bem, muito bem, cambada, quem começou o boato?"

"Que boato, doutor?"

"É, doutor. Que boato?"

"Que o doutor delegado Patranha se chama delegado Peitinho"

"Cala a boca, Dinamar. Quem faz as perguntas e as respostas sou eu"

"Mas, as respostas, doutor?"

"Vamos lá, desavergonhados, digam o nome."

>

Aparecido, vulgo Dota, vulgo Gordinflas.

Christiane Torrone, vizinha do Chico, saladeira de madame.

Emilio Fué, o humus de minhoca, pisadinha torta.

Tio Xonas, espetinho de gordura, abafador de bafômetro, estrela do Pari.

Kleber K, o do gato, passa o fino, dono da caçamba, cavalo louco da porra.

Vera, a formigona de jardim, senhorita pureza.

Tim, vulgo Tintuba, janela de vento, o que sabe que nada sabe, o picuinha.

Ricardo Rico, o calor do Ceará, o areia no cu.

Fabiana Jija, paçoca feliz, a macumba da janta, a não-é-biscoito-porra.

Firmino Menino, o liso, boateiro profissa, era uma vez.

Roni Horroroso, cu com limão, o banheiro químico de carnaval, dez pras três.

Rosa Maria, quituteira de cachaça, flor de cactus, chispa fora.

Nilva, senhorita grela beija flor, salsinha no dente, pacote devolvido.

Toni Formol, pedreiro problema, cinzeiro de lata, cabra coragem.

Seu Erasmo, tira tinta, sinuca de bico, dono do palito de dente.

Fragoso Cansado, Mija no Chope, piscou errado, virado no setenta.

Seu Rezende, feijoada da noite, 72 anos, residente de Marasópolis.

Unha, vulgo Crosta, cidra do ano novo, o carne no dente, o maciotinha.

Vini, ovo de codorna, salsicha de conserva, o porção fria.

<

Após desmantelar os nomes e codinomes dos suspeitos, alguns deles velhos conhecidos na ficha policial, o delegado Patranha andou de um lado ao outro bufando e matutando. Deu mais tiros para o alto e gritou:

"Dispersa, cardume de moribundo. Não quero ouvir palavra disso aqui na região, que tô de olho."

E o pessoal debandou rapidinho logo na primeira curva da rua. Lá atrás o delegado fazia as salvas finais com o Dinamar.

"Não teve meio dessa vez pra deduzir. Acho mesmo que o boato foi plantado por gente de fora. Mas deixe... Ainda vai entrar muita fumaça no cu de quem tá me chamando de Peitinho."

"Muito justo, doutor."

E a traseira da Veraneio saiu no samba pra retomar a ronda. Ainda na curva, a turma de tresloucados foi logo bem juntada pelo Firmino Menino.

"Junta, junta, junta, pessoal."

"Eita, diga lá, boateiro profissa."

"Não me coloque nesse adjetivo, seu Erasmo. Tenho coisa pra conta."

"Desembesta, liso."

"Quem lançou o boato....Foi o Dinamar."

"Má...Rapááááis, me conte."

***

Chegando na delegacia, o doutor Patranha desligou o motor e olhou bem fundo nos olhos do Dinamar. Com a voz bem mirradinha ele perguntou:

"Você disse pra alguém que chupou o meu peitinho?"

"Disse não. Caceta."

****

sábado, 28 de setembro de 2013

Gravidade


.ao normal soɔnod soɐ ɐʇloʌ opnʇ ǝ
˙ǝɯnlóɔuı zɐƃnɟ ǝʇuǝlosuı oɔıʇáɯnǝlɟ :lɐɯɹou oɐ áɹɐʇloʌ opnʇ ǝ sɐɔıʇsılɐqɐɔ sɐɹʌɐlɐd sɐ ɹǝzıp osıɔǝɹd é sopɐoɾuǝ soɯǝnbıɟ ǝnb sǝʇuɐ ˙ǝpɐpıʌɐɹƃ ɐ nǝʇɹǝʌuı ɐɹoɟ-sǝʌou oɔıƃáɯ o

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Salgados

Salgados

No meio da empada tinha uma azeitona
No meio da azeitona tinha um caroço
No meio do dente um trinco
No meio da alma, a dor.
Puta que pariu!

Comi coxinha com gosto de sardinha
Ao terminar, tinha uma peninha
Que dózinha da galinha
Puta que pariu!

As três pontas da esfiha
As três pontas queimadas
Mordi no meio e era massa
Puta que pariu!

Filtrei o pastel

Quarenta guardanapos
Quarenta!
Puta que pariu!

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A mão esquerda do escritor


Essa é a fera casada # e essa a fada da asa @. 


Assaz, a fera casada fere a casa da fada da asa. 

A fada da asa cede a defesa e refaz a casa de seda. 

A fera casada descasca a casa da fada e da seda faz redes assadas. 

A fada da asa fere a fera casada e refaz a casa; refaz da cera assada da seda da casa.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mais variedades notáveis


Aquela padaria 'fina'

Depois do balcão de sushi, virando a direita na prateleira de louças importadas, caminhando quarenta passos na direção do buffet de sopas, contornando a livraria, seguindo reto pela prateleira de cosméticos, desviando da fonte de chocolate, entrando na segunda a esquerda da seção de brinquedos, ali no final, após quarenta minutos, localizei o pão francês. Não estava quente.

Não se sabe ao certo do que se trata:

"Cadê aquele pedaço de asno?" (Açougueiro, sertão do Cariri, pai de 3)



|Estacionando charretes|

Na carteira, uma tuta-e-meia. Exatamente o que lhe pedia o flanelinha.
"É uma tuta-e-meia".
"Só na volta."
"Há de ser agora."
"Por quê?"
"Percalço"
Astro Miau anotou! (*l *)

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O sorvete pirata

"Slurp... Slurp... SSSSSSSssssssss..."

- DAVI!

"Slurp... Huuum!!"

- DAVI! Moleque! Escuta!

- QUIÉÉÉ, MÃE?

- Não respinga essa porcaria de sorvete no meu carpete! Já te falei mil vezes, Davi.

- Ah, não vai cair nada.

- Bem... Vejamos. Olha, toma esse dinheiro e vai lá na bombonière do seu Oscar e me traz trezentos gramas daquelas gotinhas de chocolate com menta, tá?

- Ah, mãe... Vô até lá só pra isso?

- Vai sim senhor, fazendo um favor pra mamãe. Calça o tênis e dá um pulo lá por que é pertinho e faz tempo que eu queria esses chocolatinhos. Dai eu deixo você comprar um doce pra ti.

- Tá bom.

- Traz um granulado também, pois você vai fazer doze aninhos na sexta e eu ja quero ir separando a receita do bolo. Você vai lembrar, Davi?

" Uhum.. Slurp..."

- Ai menino, termina logo esse picolé!

E partiu Davi lentamente para cruzar as quatro casas que o separavam da bomboniere do Seu Oscar. Arrastando seu par de tênis na calçada irregular, trazendo folhas secas e quilos de sujeira junto. Sua boca mascava o palitinho de madeira do sorvete, ainda com resquícios do sabor artificial do morango. Sua boca inchada e vermelha já ansiava por mais um tijolinho gelado.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

E um pulo no ar e volta a caminhar.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

E um pulo no ar e volta a caminhar.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

Davi, já quase dobrando a esquina pra alcançar a soleira da bomboniere do Seu Oscar, congelou de desejo.

"SORVETE, SORVETE, SOR - VE - TE. Olha o SOOORVETE! SORVETE, SORVETE, SORVETE!"

O queixo de Davi tremeu e a língua saltou a pontinha para umedecer os lábios. Seus olhos brilharam farpando o carrinho do sorveteiro com flechas imaginárias.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e um sorvete vou pegar. Lálálá!"

Com as mãozinhas já grudadas na borda do carrinho, Davi, na ponta dos pés, mirou atento o poço de magia gelada e colorida do velho com avental branco.

- Vais querer um dos geladinhos, garoto?

- Vô, vô, vô.

- Que sabor tu gosta?

- Morango!

- Meu favorito também. Sabe que tenho um de morango muito especial pra você?

E o velho revirou a pilha de picolés e abriu uma caixinha cheia de gelo incrustado. Agarrou um pacotinho  vermelho, no formato de uma maçã de amor.

- Toma filho. Morango especial! Este sorvete é de uma receita muito especial da minha família.

- Quanto é, tio? - Perguntou Davi agarrando com as duas mãos a pedra de gelo.

- Sete reais.

E sem ponderar questões de valor, entregou sua única nota de dez reais.

- Aqui esta pequerrucho. Seu troco justo.

- Obrigado, tio.

- Espere... Escute... Se acaso gostar muito do sorvete, pode guardá-lo para todo o sempre contigo.

- Quê, tio?

- Meu nome é Merlin e este é um picolé encantado! Somente privilegiados recebem esta dádiva das guloseimas.

- Ahhhhhhh. Merlin, o pirata! - Exclamou Davi excitado, com olhinhos expressivos.

- Não, filho. Não... Ãhn... Sou um mago. O poderoso Merlin. Rei supremo dos feiticeiros. Ah! Ah! Ah!

"Blah!" Expirou Davi, com olhinhos espremidos sobre o grande sorvete redondo e vermelho.

- Oras... saiba que ser mago nestes dias é muito dificil e... e...  garoto? Garoto?

Davi já havia entrado na bombonière enquanto o velho mago lhe dirigia a palavra. Merlin retomou a caminhada, injuriado com a falta de reconhecimento.

Na pequena loja, Davi sentiu-se perdido pela grandeza do lugar. Muitas montanhas de guloseimas para quem era baixinho e muito jovem.

- Oh, olá pequeno Davi. Que vai escolher hoje?

"Slurp, Slurp, slurp, slurp."

- Mas que sorvete, hein? - Disse Seu Oscar sorrindo.

"Hum... Slurp, Slurp."

- Diga pequeno, o que sua mãe, dona Vera, pediu pra vir pegar?

Davi interrompeu as lambidas no sorvete, que até aquele momento era a coisa mais maravilhosa, sensacional e maravilhosa mais uma vez que já havia provado. Pensando na certeza de que aquele sim, era um sorvete digno de um pirata. Dos mais corajosos. E também que era de um vermelho muito intenso e muito, muito, muito gelado.

"Mina bãe qué quisssss eu leve tessssssentassss glamassssssssss di... sssssssssss"

Com a língua congelada as palavras não saiam. Davi estava em apuros linguísticos.

- Como é, Davi?

- Eu SSSSSSSSSssssssssssssssssssSSSSSSSSSS

"Ugh! Minha lingua esta que nem o sorvete e tem sabor de morango. O que um pirata faria?". Matutou Davi encarando fixamente Seu Oscar.

Então a bola vermelha em sua mão começou a cintilar e tremer.  Davi apontou aquela delicia na direção do Seu Oscar.

" DAVI GOSTARIA DE TREZENTOS GRAMAS DE GOTAS DE CHOCOLATE MENTOLADOS E UM PACOTE PEQUENO DE GRANULADO PARA A CONFECÇÃO DE SEU BOLO DE ANIVERSÁRIO."



Com olhos estalados de espanto, Davi abaixou o sorvete.

Seu Oscar começou a rir e ficou vermelho como pimentão.

- Uh-HuH! Ah! Ah! Ah! Pequeno, muito imaginativo, não?

E embalou o pedido enquanto Davi permanecia com os olhos arregalados, a boca aberta, olhando para o próprio sorvete, que não havia derretido nem um pouco.

- Toma pequeno. Vai pagar ou pendurar? São sete reais.

O sorvete voltou a cintilar e impulsionou a mão de Davi em direção a Seu Oscar.

" IREMOS PENDURAR, DE FORMA QUE A MÃE O PAGUE NO TEMPO CORRETO. "


- Hã? Ah! Ah! Ah! Sem problemas, Davi. Boa tarde.

E o garoto começou a retornar para casa.

"Como é fantástico ter este sorvete". Pensou. "Claro que este é um objeto cobiçado por todos os piratas nos quatro cantos do mundo. E ele congela minha língua e fala por mim."

Maravilhado ele chegou a sua casa.

- Ô MÃE! CHEGUEI!

- Ai que demora Davi. Já ia lá te buscar. Trouxe o que pedi?

"Uhum"

- Ué, que sorvete esquisito é esse na sua mão?

"SOU UM SORVETE DE PODERES MÁGICOS. SOU ETERNO E SABOROSO. AGORA PERTENÇO A TUA PROLE E DELA CUIDAREI."


Foi a bola de sorvete cintilante que falou, apontando-se para a fuça da mãe de Davi.

- Escuta aqui, ô coisa estranha. Você diz que vai cuidar do meu filho, é isso?

"SIM. AGORA E SEMPRE. EM TODOS OS ASPECTOS. TU JÁ NÃO ÉS NECESSÁRIA."



- Ah é? Então o senhor Coisa-Estranha pode me dizer, por que não amarrou o cadarço do MEU filho, que voltou com os dois pés desamarrados? Você tem noção do perigo que é uma criança andar com os cadarços estendidos? E se ele cai e quebra o pé, Deus me livre. Hein? E se ele tropeça e mete a boca no chão? Você não se preveniu? Que tipo de pessoa fala que vai cuidar e deixa passar um perigo desses? Você não vai ficar com meu filho de maneira alguma, ainda mais com esse desleixo.

"MAS...MAS... EU... Er... Ahn... BOM E-EU NÃ...NÃO PERCEBI... ME...ME DESCULPE... E-EU..."


E o sorvete foi ficando mais cintilante e do extremo vermelho, passou a ficar roxo e tremer demais na mão de Davi, que a tudo assistia de olhos arregalados.

- DAVI JUNIOR. TRATE DE JOGAR ESSA COISA FORA JÁ! QUE EU SEI LÁ ONDE VOCÊ ARRUMOU!

- Ah Mãe! É do pirata Merlin.

- NÃO INTERESSA, Davi. Joga fora e pronto.

E o sorvete tremia mais e mais enquanto balbuciava desculpas. Foi então que Davi, assustado, ameaçou correr para o quintal com intenção de jogar aquilo fora. Desegonçado, o pé direito pisou sobre o cadarço do pé esquerdo, arremessando o garoto ao chão, que por sua vez, arremessou o sorvete, em forma de maçã cintilante ao chão. E a coisa se espatifou em mil pedacinhos. Davi se levantou sem machucados e com uma baita cara de choro. Sua mãe o colocou de castigo no quarto, varreu a sujeira e mais tarde comeu todos os chocolates com menta. Desde o ocorrido, Davi permanece matutando, que teria sido melhor ter enterrado o sorvete. Isso é o que faria um pirata.

E cantarolou uma canção:

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"