"Slurp... Slurp... SSSSSSSssssssss..."
- DAVI!
"Slurp... Huuum!!"
- DAVI! Moleque! Escuta!
- QUIÉÉÉ, MÃE?
- Não respinga essa porcaria de sorvete no meu carpete! Já te falei mil vezes, Davi.
- Ah, não vai cair nada.
- Bem... Vejamos. Olha, toma esse dinheiro e vai lá na bombonière do
seu Oscar e me traz trezentos gramas daquelas gotinhas de chocolate com
menta, tá?
- Ah, mãe... Vô até lá só pra isso?
- Vai sim senhor, fazendo um favor pra mamãe. Calça o tênis e dá um
pulo lá por que é pertinho e faz tempo que eu queria esses
chocolatinhos. Dai eu deixo você comprar um doce pra ti.
- Tá bom.
- Traz um granulado também, pois você vai fazer doze aninhos na sexta e
eu ja quero ir separando a receita do bolo. Você vai lembrar, Davi?
" Uhum.. Slurp..."
- Ai menino, termina logo esse picolé!
E partiu Davi lentamente para cruzar as quatro casas que o separavam da
bomboniere do Seu Oscar. Arrastando seu par de tênis na calçada
irregular, trazendo folhas secas e quilos de sujeira junto. Sua boca
mascava o palitinho de madeira do sorvete, ainda com resquícios do sabor
artificial do morango. Sua boca inchada e vermelha já ansiava por mais
um tijolinho gelado.
" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"
E um pulo no ar e volta a caminhar.
" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"
E um pulo no ar e volta a caminhar.
" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"
Davi, já quase dobrando a esquina pra alcançar a soleira da bomboniere do Seu Oscar, congelou de desejo.
"SORVETE, SORVETE, SOR - VE - TE. Olha o SOOORVETE! SORVETE, SORVETE, SORVETE!"
O queixo de Davi tremeu e a língua saltou a pontinha para umedecer os
lábios. Seus olhos brilharam farpando o carrinho do sorveteiro com
flechas imaginárias.
" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e um sorvete vou pegar. Lálálá!"
Com as mãozinhas já grudadas na borda do carrinho, Davi, na
ponta dos pés, mirou atento o poço de magia gelada e colorida do velho
com avental branco.
- Vais querer um dos geladinhos, garoto?
- Vô, vô, vô.
- Que sabor tu gosta?
- Morango!
- Meu favorito também. Sabe que tenho um de morango muito especial pra você?
E o velho revirou a pilha de picolés e abriu uma caixinha cheia de gelo
incrustado. Agarrou um pacotinho vermelho, no
formato de uma maçã de amor.
- Toma filho. Morango especial! Este sorvete é de uma receita muito especial da minha família.
- Quanto é, tio? - Perguntou Davi agarrando com as duas mãos a pedra de gelo.
- Sete reais.
E sem ponderar questões de valor, entregou sua única nota de dez reais.
- Aqui esta pequerrucho. Seu troco justo.
- Obrigado, tio.
- Espere... Escute... Se acaso gostar muito do sorvete, pode guardá-lo para todo o sempre contigo.
- Quê, tio?
- Meu nome é Merlin e este é um picolé encantado! Somente privilegiados recebem esta dádiva das guloseimas.
- Ahhhhhhh. Merlin, o pirata! - Exclamou Davi excitado, com olhinhos expressivos.
- Não, filho. Não... Ãhn... Sou um mago. O poderoso Merlin. Rei
supremo dos feiticeiros. Ah! Ah! Ah!
"Blah!" Expirou Davi, com olhinhos espremidos sobre o grande sorvete redondo e vermelho.
- Oras... saiba que ser mago nestes dias é muito dificil e... e... garoto? Garoto?
Davi já havia entrado na bombonière enquanto o velho mago lhe dirigia a
palavra. Merlin retomou a caminhada, injuriado com a falta de
reconhecimento.
Na pequena loja, Davi sentiu-se perdido pela grandeza do lugar.
Muitas montanhas de guloseimas para quem era baixinho e muito jovem.
- Oh, olá pequeno Davi. Que vai escolher hoje?
"Slurp, Slurp, slurp, slurp."
- Mas que sorvete, hein? - Disse Seu Oscar sorrindo.
"Hum... Slurp, Slurp."
- Diga pequeno, o que sua mãe, dona Vera, pediu pra vir pegar?
Davi interrompeu as lambidas no sorvete, que até aquele momento era a
coisa mais maravilhosa, sensacional e maravilhosa mais uma vez que já
havia provado. Pensando na certeza de que aquele sim, era um sorvete digno de um
pirata. Dos mais corajosos. E também que era de um vermelho muito
intenso e muito, muito, muito gelado.
"Mina bãe qué quisssss eu leve tessssssentassss glamassssssssss di... sssssssssss"
Com a língua congelada as palavras não saiam. Davi estava em apuros linguísticos.
- Como é, Davi?
- Eu SSSSSSSSSssssssssssssssssssSSSSSSSSSS
"Ugh! Minha lingua esta que nem o sorvete e tem sabor de morango. O que
um pirata faria?". Matutou Davi encarando fixamente Seu Oscar.
Então a bola vermelha em sua mão começou a cintilar e tremer. Davi apontou aquela delicia na direção do Seu Oscar.
" DAVI GOSTARIA DE TREZENTOS GRAMAS DE GOTAS DE CHOCOLATE MENTOLADOS E
UM PACOTE PEQUENO DE GRANULADO PARA A CONFECÇÃO DE SEU BOLO DE
ANIVERSÁRIO."
Com olhos estalados de espanto, Davi abaixou o sorvete.
Seu Oscar começou a rir e ficou vermelho como pimentão.
- Uh-HuH! Ah! Ah! Ah! Pequeno, muito imaginativo, não?
E embalou o pedido enquanto Davi permanecia com os olhos arregalados, a
boca aberta, olhando para o próprio sorvete, que não havia derretido
nem um pouco.
- Toma pequeno. Vai pagar ou pendurar? São sete reais.
O sorvete voltou a cintilar e impulsionou a mão de Davi em direção a Seu Oscar.
" IREMOS PENDURAR, DE FORMA QUE A MÃE O PAGUE NO TEMPO CORRETO. "
- Hã? Ah! Ah! Ah! Sem problemas, Davi. Boa tarde.
E o garoto começou a retornar para casa.
"Como é fantástico ter este sorvete". Pensou. "Claro que este é um
objeto cobiçado por todos os piratas nos quatro cantos do mundo. E ele
congela minha língua e fala por mim."
Maravilhado ele chegou a sua casa.
- Ô MÃE! CHEGUEI!
- Ai que demora Davi. Já ia lá te buscar. Trouxe o que pedi?
"Uhum"
- Ué, que sorvete esquisito é esse na sua mão?
"SOU UM SORVETE DE PODERES MÁGICOS. SOU ETERNO E SABOROSO. AGORA PERTENÇO A TUA PROLE E DELA CUIDAREI."
Foi a bola de sorvete cintilante que falou, apontando-se para a fuça da mãe de Davi.
- Escuta aqui, ô coisa estranha. Você diz que vai cuidar do meu filho, é isso?
"SIM. AGORA E SEMPRE. EM TODOS OS ASPECTOS. TU JÁ NÃO ÉS NECESSÁRIA."
- Ah é? Então o senhor Coisa-Estranha pode me dizer, por que não
amarrou o cadarço do MEU filho, que voltou com os dois pés
desamarrados? Você tem noção do perigo que é uma criança andar com os
cadarços estendidos? E se ele cai e quebra o pé, Deus me livre. Hein? E
se ele tropeça e mete a boca no chão? Você não se preveniu? Que tipo
de pessoa fala que vai cuidar e deixa passar um perigo desses? Você não
vai ficar com meu filho de maneira alguma, ainda mais com esse
desleixo.
"MAS...MAS... EU... Er... Ahn... BOM E-EU NÃ...NÃO PERCEBI... ME...ME DESCULPE... E-EU..."
E o sorvete foi ficando mais cintilante e do extremo vermelho, passou a
ficar roxo e tremer demais na mão de Davi, que a tudo assistia de olhos
arregalados.
- DAVI JUNIOR. TRATE DE JOGAR ESSA COISA FORA JÁ! QUE EU SEI LÁ ONDE VOCÊ ARRUMOU!
- Ah Mãe! É do pirata Merlin.
- NÃO INTERESSA, Davi. Joga fora e pronto.
E o sorvete tremia mais e mais enquanto balbuciava desculpas. Foi então
que Davi, assustado, ameaçou correr para o quintal com intenção de
jogar aquilo fora. Desegonçado, o pé direito pisou sobre o cadarço do
pé esquerdo, arremessando o garoto ao chão, que por sua vez, arremessou
o sorvete, em forma de maçã cintilante ao chão. E a coisa se espatifou
em mil pedacinhos. Davi se levantou sem machucados e com uma baita
cara de choro. Sua mãe o colocou de castigo no quarto, varreu a sujeira
e mais tarde comeu todos os chocolates com menta. Desde o ocorrido,
Davi permanece matutando, que teria sido melhor ter enterrado o
sorvete. Isso é o que faria um pirata.
E cantarolou uma canção:
" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"
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