quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O sorvete pirata

"Slurp... Slurp... SSSSSSSssssssss..."

- DAVI!

"Slurp... Huuum!!"

- DAVI! Moleque! Escuta!

- QUIÉÉÉ, MÃE?

- Não respinga essa porcaria de sorvete no meu carpete! Já te falei mil vezes, Davi.

- Ah, não vai cair nada.

- Bem... Vejamos. Olha, toma esse dinheiro e vai lá na bombonière do seu Oscar e me traz trezentos gramas daquelas gotinhas de chocolate com menta, tá?

- Ah, mãe... Vô até lá só pra isso?

- Vai sim senhor, fazendo um favor pra mamãe. Calça o tênis e dá um pulo lá por que é pertinho e faz tempo que eu queria esses chocolatinhos. Dai eu deixo você comprar um doce pra ti.

- Tá bom.

- Traz um granulado também, pois você vai fazer doze aninhos na sexta e eu ja quero ir separando a receita do bolo. Você vai lembrar, Davi?

" Uhum.. Slurp..."

- Ai menino, termina logo esse picolé!

E partiu Davi lentamente para cruzar as quatro casas que o separavam da bomboniere do Seu Oscar. Arrastando seu par de tênis na calçada irregular, trazendo folhas secas e quilos de sujeira junto. Sua boca mascava o palitinho de madeira do sorvete, ainda com resquícios do sabor artificial do morango. Sua boca inchada e vermelha já ansiava por mais um tijolinho gelado.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

E um pulo no ar e volta a caminhar.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

E um pulo no ar e volta a caminhar.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

Davi, já quase dobrando a esquina pra alcançar a soleira da bomboniere do Seu Oscar, congelou de desejo.

"SORVETE, SORVETE, SOR - VE - TE. Olha o SOOORVETE! SORVETE, SORVETE, SORVETE!"

O queixo de Davi tremeu e a língua saltou a pontinha para umedecer os lábios. Seus olhos brilharam farpando o carrinho do sorveteiro com flechas imaginárias.

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e um sorvete vou pegar. Lálálá!"

Com as mãozinhas já grudadas na borda do carrinho, Davi, na ponta dos pés, mirou atento o poço de magia gelada e colorida do velho com avental branco.

- Vais querer um dos geladinhos, garoto?

- Vô, vô, vô.

- Que sabor tu gosta?

- Morango!

- Meu favorito também. Sabe que tenho um de morango muito especial pra você?

E o velho revirou a pilha de picolés e abriu uma caixinha cheia de gelo incrustado. Agarrou um pacotinho  vermelho, no formato de uma maçã de amor.

- Toma filho. Morango especial! Este sorvete é de uma receita muito especial da minha família.

- Quanto é, tio? - Perguntou Davi agarrando com as duas mãos a pedra de gelo.

- Sete reais.

E sem ponderar questões de valor, entregou sua única nota de dez reais.

- Aqui esta pequerrucho. Seu troco justo.

- Obrigado, tio.

- Espere... Escute... Se acaso gostar muito do sorvete, pode guardá-lo para todo o sempre contigo.

- Quê, tio?

- Meu nome é Merlin e este é um picolé encantado! Somente privilegiados recebem esta dádiva das guloseimas.

- Ahhhhhhh. Merlin, o pirata! - Exclamou Davi excitado, com olhinhos expressivos.

- Não, filho. Não... Ãhn... Sou um mago. O poderoso Merlin. Rei supremo dos feiticeiros. Ah! Ah! Ah!

"Blah!" Expirou Davi, com olhinhos espremidos sobre o grande sorvete redondo e vermelho.

- Oras... saiba que ser mago nestes dias é muito dificil e... e...  garoto? Garoto?

Davi já havia entrado na bombonière enquanto o velho mago lhe dirigia a palavra. Merlin retomou a caminhada, injuriado com a falta de reconhecimento.

Na pequena loja, Davi sentiu-se perdido pela grandeza do lugar. Muitas montanhas de guloseimas para quem era baixinho e muito jovem.

- Oh, olá pequeno Davi. Que vai escolher hoje?

"Slurp, Slurp, slurp, slurp."

- Mas que sorvete, hein? - Disse Seu Oscar sorrindo.

"Hum... Slurp, Slurp."

- Diga pequeno, o que sua mãe, dona Vera, pediu pra vir pegar?

Davi interrompeu as lambidas no sorvete, que até aquele momento era a coisa mais maravilhosa, sensacional e maravilhosa mais uma vez que já havia provado. Pensando na certeza de que aquele sim, era um sorvete digno de um pirata. Dos mais corajosos. E também que era de um vermelho muito intenso e muito, muito, muito gelado.

"Mina bãe qué quisssss eu leve tessssssentassss glamassssssssss di... sssssssssss"

Com a língua congelada as palavras não saiam. Davi estava em apuros linguísticos.

- Como é, Davi?

- Eu SSSSSSSSSssssssssssssssssssSSSSSSSSSS

"Ugh! Minha lingua esta que nem o sorvete e tem sabor de morango. O que um pirata faria?". Matutou Davi encarando fixamente Seu Oscar.

Então a bola vermelha em sua mão começou a cintilar e tremer.  Davi apontou aquela delicia na direção do Seu Oscar.

" DAVI GOSTARIA DE TREZENTOS GRAMAS DE GOTAS DE CHOCOLATE MENTOLADOS E UM PACOTE PEQUENO DE GRANULADO PARA A CONFECÇÃO DE SEU BOLO DE ANIVERSÁRIO."



Com olhos estalados de espanto, Davi abaixou o sorvete.

Seu Oscar começou a rir e ficou vermelho como pimentão.

- Uh-HuH! Ah! Ah! Ah! Pequeno, muito imaginativo, não?

E embalou o pedido enquanto Davi permanecia com os olhos arregalados, a boca aberta, olhando para o próprio sorvete, que não havia derretido nem um pouco.

- Toma pequeno. Vai pagar ou pendurar? São sete reais.

O sorvete voltou a cintilar e impulsionou a mão de Davi em direção a Seu Oscar.

" IREMOS PENDURAR, DE FORMA QUE A MÃE O PAGUE NO TEMPO CORRETO. "


- Hã? Ah! Ah! Ah! Sem problemas, Davi. Boa tarde.

E o garoto começou a retornar para casa.

"Como é fantástico ter este sorvete". Pensou. "Claro que este é um objeto cobiçado por todos os piratas nos quatro cantos do mundo. E ele congela minha língua e fala por mim."

Maravilhado ele chegou a sua casa.

- Ô MÃE! CHEGUEI!

- Ai que demora Davi. Já ia lá te buscar. Trouxe o que pedi?

"Uhum"

- Ué, que sorvete esquisito é esse na sua mão?

"SOU UM SORVETE DE PODERES MÁGICOS. SOU ETERNO E SABOROSO. AGORA PERTENÇO A TUA PROLE E DELA CUIDAREI."


Foi a bola de sorvete cintilante que falou, apontando-se para a fuça da mãe de Davi.

- Escuta aqui, ô coisa estranha. Você diz que vai cuidar do meu filho, é isso?

"SIM. AGORA E SEMPRE. EM TODOS OS ASPECTOS. TU JÁ NÃO ÉS NECESSÁRIA."



- Ah é? Então o senhor Coisa-Estranha pode me dizer, por que não amarrou o cadarço do MEU filho, que voltou com os dois pés desamarrados? Você tem noção do perigo que é uma criança andar com os cadarços estendidos? E se ele cai e quebra o pé, Deus me livre. Hein? E se ele tropeça e mete a boca no chão? Você não se preveniu? Que tipo de pessoa fala que vai cuidar e deixa passar um perigo desses? Você não vai ficar com meu filho de maneira alguma, ainda mais com esse desleixo.

"MAS...MAS... EU... Er... Ahn... BOM E-EU NÃ...NÃO PERCEBI... ME...ME DESCULPE... E-EU..."


E o sorvete foi ficando mais cintilante e do extremo vermelho, passou a ficar roxo e tremer demais na mão de Davi, que a tudo assistia de olhos arregalados.

- DAVI JUNIOR. TRATE DE JOGAR ESSA COISA FORA JÁ! QUE EU SEI LÁ ONDE VOCÊ ARRUMOU!

- Ah Mãe! É do pirata Merlin.

- NÃO INTERESSA, Davi. Joga fora e pronto.

E o sorvete tremia mais e mais enquanto balbuciava desculpas. Foi então que Davi, assustado, ameaçou correr para o quintal com intenção de jogar aquilo fora. Desegonçado, o pé direito pisou sobre o cadarço do pé esquerdo, arremessando o garoto ao chão, que por sua vez, arremessou o sorvete, em forma de maçã cintilante ao chão. E a coisa se espatifou em mil pedacinhos. Davi se levantou sem machucados e com uma baita cara de choro. Sua mãe o colocou de castigo no quarto, varreu a sujeira e mais tarde comeu todos os chocolates com menta. Desde o ocorrido, Davi permanece matutando, que teria sido melhor ter enterrado o sorvete. Isso é o que faria um pirata.

E cantarolou uma canção:

" Somos piratas e rumamos ao mar. Somos piratas e ninguém vai nos pegar. Lálálá!"

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