terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Os escritores da descrição perfeita (Parte III)




Tema: Pintando um quadro

Problema: "Detalhismo podre"

Léon de Bonfom trancou-se em sua sala de trabalhos para pintar a obra maestra que há tantos anos perseguia. Volteou duas vezes a pequena chave cor de cobre na fechadura polida da maciça porta de carvalho branco que há poucas semanas mandara instalar. Voltou-se para a amplitude daquele recinto. As paredes brancas, puras, recém pintadas, tão, que exalavam levemente um aroma de castanhas cozidas. Sem nenhum móvel, exceto o cavalete e o quadro, áspero, amarelado, teso. Um singelo banco negro apoiava a paleta, os pincéis macios, os gomos de tinta. O azul céu, o vermelho da rainha, o amarelo da casa de Libra, o verde cobra, o branco, o preto.

Era um belo contraste destas armas de criação com o chão. O piso descascado de ladrilhos sujos, parte demolidos, parte sobrepostos em duas, três camadas, ladrilhos em gerações. A imensidão das paredes novas e o sujo, velho, chão. Léon de Bonfom suspirou, sorriu. Pé por pé, acochegou-se no banco negro. Pegou a paleta com a mão direita, o pincel maior com a mão esquerda. Um gênio canhoto. Mergulhou no preto, triscou o vermelho, salivou as primeiras linhas. O tempo correu.

Formava-se aos poucos o homem na tela. O próprio Léon de Bonfom, em seu auto retrato. Ele próprio, com sua casaca cor de vinho, aberta no peito nú, a mesma que usava neste momento de intensa pintura. O calção forrado de antigas gotas de cores passadas, de quadros passados. As engraçadas sapatilhas femininas que tanto lhe confortavam os pés, com sua camurça felpuda, esverdeada, que lhe dava cócegas. A posição idem, de alguém que pinta um quadro. O mesmo quadro de auto retrato e dentro, mais um auto retrato. Léon sentiu que ainda faltava algo.

Pintou o pulso direito cortado. Encheu três quartos da tela com o mais intenso dos sangramentos. Seus olhos brilhavam. Não notou, no entanto, seu próprio pulso abrir-se, como uma borboleta ao abrir e fechar a asa numa manhã de primavera. O esguicho de sangue bombando com um zunido semelhante a abelhas ao longe. Ficou tonto, Léon. Mas não queria parar. Carregou mais no vermelho do quadro e o mesmo vermelho perpetrou a sala de pintura. A ferida no pulso cada vez mais aberta, as veias saracoteando como se tivessem sido cerradas com uma lixa cega, um pedaço do osso tocando uma sinfonia como um trote de cavalo, pois debatia-se num duelo de osso contra osso. O corpo em tremedeira e o pincel girava na tela com escárnio.

Então Léon resolveu que era melhor dar por encerrado seu quadro. Assinou com um garrancho e rapidamente caminhou até a porta. Enfiou a chave na fechadura e girou a maçaneta. A bola de ferro não se mexeu. Suas mãos ensopadas de sangue escorregavam. Bateu com o ombro na madeira, em desespero. A mão com o pulso rasgado, pendia horrivelmente por três tiras de pele e nervos. Olhou novamente para seu auto retrato. Ele próprio em desenho, imortalizado, tentando abrir a fechadura, maneta, pálido. Caiu no chão. Defecou-se e rolou inumeras vezes sobre o próprio excremento. Espiou o quadro e viu a si mesmo em tons de marrom e vermelho. Olhou para a porta do quarto, arrastou-se até ela. Assinou seu garrancho com o dedo de fezes, imaculando a parede branca. Expirou. Virou instalação na bienal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário