quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

PAVÃO À PORTA



       
     


O pavão que Alécio ganhou na rifa de domingo chegou excitado à nova morada.  Posto no quintal barrento, sassaricou pelos quatro cantos do terreno em solene e educado porte. Pupilou para as galinhas velhas que ali ciscavam, satisfeito com as acomodações.  Faminto, buscou uma bicada de qualquer coisa pelo chão. Não conseguindo uma boa sobra da ração das galinhas, ponderou se o magro senhor, que lá o pôs, pudesse oferecer algo melhor.    

Aproximou-se em desfile lento até a única porta do casebre e patinhou em círculos de forma a roçar a longa cauda na madeira. Tardando a funcionar o intento, parou de frente a entrada encarando com um olhar apatetado as paredes sujas.  Não muito, a porta rangeu, assustando o pavão.        

Uai! Qui bichesse?    

Ara, para di ganí a toa, Café. Isso é um pavão! Táveno, não?       

Coisim doido.   

Vai vê qui tá no lugar du galo Zeferino.  

Pavão é galo, Janja?  

— Ieu qui sei? Tôgarrada pá brinca fora, vamo?          

Tô fora, sô...    

O pavão recuou, alerta. Ciscou duas vezes e pensou em girar, fez que ia pra perto das galinhas, parou, voltou.  Por fim, desfraldou a cauda. O pescoço alongado, o peito endurecido e as penas a trepidar as pontas na brisa. Sua gigante cauda, aberta em cores vibrantes, fez as galinhas encolherem-se no fundo do quintal.

Óia, qui horror, Janja!         

Pavão faz isso, Café.

Pra mó di quê? Ispantá muriçoca?         

 
Qué metê!      

Diacho... Taca u osso pra distraí ele.      

Nada! Só qui tem é osso enterrado nes quintal tudim.        

Dá nem pra passa pressa lapa esgandaiada.  Bem queria u osso!

Nunca qui vi, Café, só di assuntá qui sei. Ele qué metê.     

Vorta di rabo, Janja.  

Vorto nada, sô. Pensa...      

Nóis piamo pra cá e agora pra saí tem disso. Tar di pavão nu mei du camim!

Ié memo porção di osso no quintal, Café. Ói qui eu queria pegá um deles.      

O pavão pendeu pra um lado e pro outro com a portentosa cauda. A fome apertou e a situação parecia longe de acabar. Arriscou ir mais perto, torcendo por desempatar a porta.        

Janja, Janja, corre buscá Alécio!   

Aquele leque imenso bloqueou toda a entrada. A única coisa que Café distinguia na contraluz era o pontiagudo bico do pavão na soleira. De instinto irrefreável, Café avançou no pescoço do pavão. Este saltou com toda força que o perigo lhe carregou aos músculos, mas não o suficiente para escapar do chacoalho. Café sacudiu a ave, batendo-a de um lado ao outro do batente. Janja voltou derrapando, trazendo um chinelo velho na boca. Alécio atrás, arremetendo descalço na cozinha e escorregando no piso perfumado de pinho.   

Tá qui pariu, Café!! – Alécio ergueu-se de um pulo, esfregando a anca esquerda.    

Fássunão, Café – Suplicou Janja largando o babado chinelo.       

Alécio chutou Café na barriga, fazendo-o rolar pelo piso. 



Réda pra lá, tiriça
O pavão caiu de ponta cabeça na terra vermelha do quintal. Janja ameaçou sair da cozinha em direção à ave, mas Alécio a bloqueou enfiando o pé em seu nariz. Penas coloridas planavam ao redor de todos.  
  

Paz daqui, trem vira lata! Polvilhou tapas no ar o dono da casa.

Os dois cachorros fugiram acuados pra debaixo da cama do pequeno quarto. Alécio ergueu com cuidado o pavão, que girava os pequenos olhos e aos poucos fechava a cauda despenada.   

Pai do céu, qui destrambeio ti fizeram us purguento?         

Fungando no carpete, Café chorava baixinho consolado em lambidas por Janja. O pavão, agora triste e envergonhado, aos poucos se recuperou da violência. Satisfeito por não ter seu prêmio de rifa ido pro além, Alécio providenciou um pires cheio de sementes de abóbora e o colocou ao lado das galinhas, que estavam trêmulas no fundo da casinhola.  

Cê tá bão, bicho duro. Vai vive mai dia. — Contentou-se o homem enquanto desentortava algumas penas da cabeça da ave.         

O pavão macerou as sementes, moroso, alimentando um desejo de vingança. Após um sono picado, no primeiro traço de sol que cortou a goiabeira, ele pateou cambaleante até a porta. Desfraldou mais uma vez o estandarte de plumas, agora alquebrado e sujo de barro; e lá permaneceu, rigoroso, até Alécio abrir a porta.    

Janja, Janja, ói lá! — Apontou Café com o focinho úmido, ainda enfurnado debaixo da cama. — Mai dinovo quele pavão nu mei du camim.    

Cê incomoda? U bicho qué memo metê.

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Conto de Sérgio Ferrari; do Livro Alguma Objeção - antologia de contos da Contenda Literária de 2014, coordenada pelo mestre Marcelino Freire e, além do próprio, participam do livro:


Alícia Peres, Andréa Moraes, Anita Deak, Carlos H. Schoroeder, Eliana Castro, Estefânia Barsante, Fábio Ferreira Pinto, Gabriel Sotero, Gê Martins, Graziele Shimizu, Janaína Quitério, Maíla Sandoval, Marcos Zeller, Mário Aviscaio, Mauricio Leite, Mauro Rubens, N. Zuccala, Nicole Anne Collet, Priscila Jácomo, Roberto Miike, Rossana Di Munno, Sérgio Ferrari, Sheila Ferreira, Tina Morais.


A edição do livro ficou por conta do mestre: Vanderley Mendonça do Clube Hussardos e Selos Demônio Negro e Edith.

Lançamento Limitado. (quem quiser uma cópia, me procure no Face.) Obrigatô

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