terça-feira, 23 de junho de 2015

O desinquivincavacador de caravelarias



O desinquivincavacador de caravelarias 
 
sob o pseudônimo de Mauro Milli  

    
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Querido Marcel, Filipêndula isto não é. É Alcaravia!           
A garota tapou as orelhas, boquiaberta.  

Não diga besteiras, Filipo! Eu jamais confundiria estes temperos em um conto curto. O problema da poesia é sua elasticidade irresponsável, que faz uso de liberdades absolutamente ridículas.   

Filipo devolveu a folha.          

Discordo do inimaginável pensamento. Você é tão simples contista, amigo. Entrega apenas o frugal.       

Eu entrego o frugal? 

Pai, o que é frugal?  

O pai olhou pensativo para a filha. 

Frugal é algo simples, Júlia, como poesia.  
Pois fique você perlustrando teus oníricos ornitorrincos contistas e fico eu polustrando minhas perfeitíssimas rimas em paralelogramos.        

A pequena Julia puxou a manga do pai.   

Pai, eu acho que vou desmaiar igual na novela.      

Levou a mão até a testa e em seguida fez careta para o poeta Filipo.     

Vamos parar com isso, Filipo. Você não vai recitar algo aqui no sarau hoje?

Amigo, recitarei. Teci um poema de maneira tão rebuscada que me dá prazer de lê-lo em voz alta, em rompante profuso de fluxo perfeito.    

Metade das palavras que você fala nem ao menos existem. Olhe ao redor. Aqui na casa de Senhora Antonomásia, somos pouco mais de vinte amigos. Não tenha medo de engasgar, olhe lá, hein.     

Senhora
Antonomásia, grassando no apartamento e distribuindo uma recepção agradável, disparou beijinhos no ar. Beijos correspondidos, seguidos de aceno e de Júlia estalando o lábio.         

Engasgado jamais. Como bem sabe Antonomásia, Viscondessa das Letras — Prosseguiu o poeta.        

Até minha filha com nove anos tem um vocabulário melhor. Não é, Julia?    

Sim, pai.          

Percebe agora, Filipo? Você usa coisas mais que frugais.

Eu sou um desbravador da ciência letral!       

Você não pode simplesmente inventar palavras a torto e a direito.

— E você não pode inventar situações pouco plausíveis, Marcel!    

A menina levantou do afofado sofá e pegou uma mochila debaixo da mesinha de centro.  

Olha isso, tio Filipo. 

Ela abriu o zíper e retirou um frasco enorme, destes que engarrafamos palmitos, chacoalhando-o na frente do poeta.         

Que coisa esquisita é essa aí dentro?   

É um Mestre Trava Línguas, que achei no jardim de casa!

O pai de Julia tirou os óculos do bolso da camisa e ajeitou-os para observar o pote.

Julia, você não contou pra mim que havia capturado um Mestre Trava Línguas. Isso parece tão ensaiado. Que coincidência perfeita.  

Essa coisa feia na jarra é sim uma coincidência típica de contista vagabundo. Que vergonha, Marcel.      

— Assim você me ofende. Vamos com calma. — Devolveu Marcel, chateado.    

— Tudo bem, eu peço desculpas pelo seu
deus ex machina.

O contista ergueu as mãos para o alto e suspirou. Retirou a carteira do bolso e a abriu de ponta cabeça.
     

— É disto que você está falando, caro poeta? Mea culpa!     

Chacoalhou a carteira e uma bola de gude pequenina rolou no carpete. Filipo inclinou-se com olhar de lupa.     

— O quê possivelmente é essa coisinha? — Aproximou-se curioso, Filipo.       

— Um
deus ex machina que me foi dado há muito tempo por outro  escritor. — Satisfez-se cruzando os braços.                        

— Pai, tem perninhas e bracinhos saindo dele.  

A bolinha passou a dar voltas nos pés de Marcel.
        
— Um algo agitado! — Ponderou o poeta.

— É algo só pra de vez em quando. Um mimo. Nada tem a ver com esse negócio que minha filha achou. Vocês, poetas, não tem nada do tipo?      


Nós poetas funcionamos de modo mais carnal, emocional. Seu deus ex machina é um solucionador de problemas antinatural. Não compactuarei.  

A garota chacoalhou o pote enorme em suas pequeninas mãos.    

O que está fazendo, filha?
Ela grudou o olho no vidro.   

Vou acordar ele.       

O poeta Filipo levantou-se do sofá e bateu uma mão na outra.      

Querida garotinha, isso é minhoquice. Vou ao bar refrescar a alma com um aperol spritz e treinar meu intrincado poema. Marcel... Júlia... Com licença.         

E você?  
Eu o quê, pai? 
Vai fazer o quê com este monstrinho?  

Ela sentou de um pulo, sorrindo.    

Ele acordou!    

Um grupo de pessoas aproximou-se e um rapaz estendeu um livro na direção de Marcel.  

Um autógrafo, neste que é das antigas, Marcel?    
 
Sorrindo, ele manuseou a obra com carinho.     

Meu primeiro livro? Joia!     

Julia destampou o pote e o Mestre Trava Línguas escorregou a cabeça cinza enrugada pra fora. Os olhos quadrados remelentos foram de um lado para o outro do pequeno salão, apinhado de pessoas que gargalhavam e brindavam.       

Boa noite, Mestre Trava Línguas. Meu nome é Julia e este é meu pai, Marcel e esses são os fãs dele, eu acho. — Serenou a garota.    
        

A pequena criatura esticou os braços limosos pelo bocal do vidro e espreguiçou. Julia, com cara de nojo, colocou rapidamente o pote na mesinha.        

Primeiramente, boa noite. Pós-posteriormente, estou nu! Rugiu rápido e rouco o dito Mestre.      

Julia tapou os olhos. Marcel abriu o livro que acabara de autografar e o colocou aberto e em pé na frente do Mestre Trava Linguas. O grupo de pessoas, que Julia achava serem fãs do pai, amontoou-se, lotando a diminuta área do sofá.

Quem tem prata para parolar, junta mais. — Salpicou no ar os dedos finos e cumpridos.         

Ele está meio decente agora, filha.       

Ela destapou os olhos.

A moradia cheira a escritor! Acham que sou tipo um gênio de tino que vá gerir gentis pedidos?    
Ela pranchou timidamente o vestido lilás, olhou para o pai, virou pra mesinha.        

— Eu sou só escritora de poeminhas. Não quero nada, não.

 A bocarra do Mestre Trava Línguas espremeu um bico pra em seguida inflar as bochechas estriadas.   

Desdobra, desce, dobra, se sobra dobra, se não sobra desdobra em dobro a dobra que desce e desdobra de novo. — Assoprou um bafo quente. — Poema perfeito feito à pressa.         

E o Mestre riu como taramela frouxa, espremendo e entortando o livro de Marcel, que escondia as partes do minúsculo corpo rugoso. Os olhos quadrados travaram na incansável bolinha de gude que dava voltas no sapato do contista.         

— Que adverso reverso infesto é este a rodar?  

O dito deus ex machina parou e soltou fumaça de seu topo.
 
 É um negócio que meu pai usa. — Respondeu Julia pegando com delicadeza o pequeno gude e o colocando na mesinha.     

Marcel amarelou um sorriso, cruzando as pernas.      

— Gente, eu não uso tanto assim.   
        
Neste momento, todos que contavam casos nos cantos da casa, ansiosos pelas primeiras leituras do sarau, juntaram-se ao redor do sofá, concentrando energia curiosa sobre as personagens que agora se estranhavam. Sorvendo o último gole de seu colorido drinque, o poeta Filipo ombreou em passagem duas senhoras e parou no meio da vista de todos. Virou o copo sobre a bolinha, aprisionando-a.

 — Sem trapaças, seus malucos. Vamos começar declamar e digo logo que serei o primeiro a verborrar as tintas!       


Zum, zum, zum, pretenso travador.      

Filipo esfregou as bochechas e em seguida abriu um papel gasto do bolso da casaca.       

— Não estrague meus poemas trava línguas, criaturinha vil.         

— Nada. Não vou nem abrir a boca. — Cuspiu de pronto o Mestre Trava Línguas, sentando desajeitado sobre o copo.      

— Eu quero fazer um poeminha, pai. Por favor, esqueci meus poeminhas em casa.   

— Corra ali atrás e peça, por favor, que alguém lhe arrume um papel e um lápis.     

A garota deu a volta no sofá e foi ter com a pomposa senhora
Antonomásia. Filipo abriu os braços e cutucou o ar de forma a afastar um pouco os presentes.

— Aqui mesmo começo, dileta
Antonomásia?    

Ela volteou uma mesura com as mãos e Felipo pigarreou.    
        

“O Desinquivincavacador de Caravelarias todos sabem.”    


— Essa é velha, velhaca que o valha. — Fez onda o Mestre.

Furioso, Felipe tacou o papel no chão e desafiou os olhos quadrados que o miravam cheios de escárnio. Os presentes seguraram polidamente as risadas, limitando-se a sorrirem.
— Faça melhor, virulento! — Bufou, Filipo.        

A bolinha passou a saltar dentro do copo.  Marcel ergueu a filha no colo e ela balançou a folha em frente ao rosto dele com seu novo poeminha. O Mestre Trava Línguas saltou no sofá, assustando Filipo. Cutucou Julia e sentenciou abertamente.

— Eu não tenho prova pra provar. Sei sim que sei que essa garotinha vai saber ser melhor, vai sim.  
 

Marcel pegou a filha no colo e a colocou de pé na mesinha, pegou o livro e o equilibrou no sofá.  

— Filipo, grande poeta que é. — Laureou o contista — Façamos algo mais bacana para a noite. Trocaremos os poemas. E se é uma disputa, que seja saudável, não por qualidade, mas por dificuldade.         

— Tudo bem, eu leria tal qual relâmpago a poesia de uma criança e o restante da noite ela tentaria ler fluentemente a minha. Aceita?

Marcel arqueou as sobrancelhas para Júlia.       

— Topo! — Animou-se a garota — Mas eu começo.     

Todos suspiraram. Formou-se fila no bar e após quinze minutos, a maioria segurava uma taça. A garota começou a desenvolver a elegante letra de Filipo. 


“O desinquivincavacador de caravelarias todos sabem.    
E aqui estou para que destravem.
Desinquivincavem,
lembranças que a todos cabem.     
Das memórias lindas,  
como sabem,
Brincadeiras amáveis desfazem     
Bambolês, batata quente, salva salva      
como sabem?      
Desinquivincavem.
Elefante colorido, corrida do saco, cobra cega  
Como sabem?      
Destravem.         
Amarelinha,
Esconde, esconde , vivo ou morto,
Desinquincavacadores desinquivincavem.         
Caravelarias nas caravelas que partem. 
A brincar, a brincar     
Desinquivincavem".




No meio das palmas, em razão do inabalável sucesso na leitura do intrincado poema, Filipo saudou Julia com antipatia.    

— Eu hei de reconhecer sua sorte, criança Julia. Agora é minha vez. — Ele desamassou um pouco a folha com o poema da garota e pigarreou.    

“O maracaju! O mejuricu!”     


Tapou a boca assustado e aproximou a folha no rosto.        

“O marajá! O majará! O majaracu! Maraju!”     


— O maracujá! — Finalmente desengasgou Filipo.      

Julia riu baixinho, reprovada pelo olhar do pai.

"O maracujá!        
O macaju... O manjacu"...       


— Esperem, esperem. Vou conseguir, é só... — Resfolegou — Esperem, vão ver já... — Desabotoou o pescoço da camisa.   

“O Macaju... Quero dizer... Majaca...”       

        
O Mestre Trava Línguas puxou uma salva de palmas que contagiou a todos. No meio das palmas e gritos, Marcel saudou Filipo e Julia apertou sua mão.     

— Está tudo bem, tio Filipo, não precisa terminar. Esse é dos meus mais difíceis.     

Filipo ignorou a menina e apontou o dedo duro para o Mestre.    

— Você, vil criatura, enfeitiçou-me para não conseguir ler esta besteirinha!    

O Mestre Trava Línguas não pode responder ocupado que estava em tentar esmagar a bolinha de gude.    

— Pare com isso, Mestre! — Gritou Julia.  

— Não gosto dessa porcaria. Eu travo o caminho e ela destrava o caminho
. Travo trova, destrava trova, travo prosa, destrava prosa. Que desfaçatez!  — Retrucou o cinzento soltando a bolinha.     

— Olha só, monstro — Interveio Filipo — estou do seu lado. Não gosto de saída fácil também.         

— Ninguém tem que entender também a ninguém que tem que entender alguém. — Decidiu o Mestre, arrotando azedamente em seguida.       

O poeta, sem titubeio, chutou de trivela o
deus ex machina. Júlia correu na vidraça quebrada por onde passara de jato a bolinha e a abriu com cuidado.         

Imediatamente os presentes começaram a dançar. Sem som algum, sapateavam vibrantes. Durante a bagunçada estética, uma viscosidade transparente passou a gotejar do teto. O Mestre Trava Línguas enfurnou-se de volta no pote de vidro; os olhos quadrados deitaram em um sono de ronco quente. Cada um dos convidados foi surpreendido e em seguida devorado por um dragão amarelo, que até então permanecera escondido no armário do banheiro. Exceto por Filipo, que, alarmado, fugiu com o pote de palmito escondido na casaca.    
        
Uma canoa zingrou lentamente no ar. Ziguezagueando o remo, estava um narigudo Desinquivincavacador de Caravelarias, embotado numa capa de borracha. Farejou o ar e soltou a bolinha de gude na mesinha de centro. O dragão amarelo encolheu-se de medo num canto da sala. Cuspiu em soluços Júlia e Marcel, que caíram no tapete completamente enlameados. A canoa virou em direção a eles, o Desinquivincavacador curvou-se para a garota e abriu a mão sulcada pela umidade.     

Agarre o teu poema e devolva-me. ― Coachou o narigudo.      

Júlia olhou para o carpete felpudo e viu o poema amassado. Pegou-o, amassou-o ainda mais e o arremessou na canoa.      

“O maracujá.       
O marajá pediu suco de maracujá. 
Mas não tinha suco e ficou no manjar.     
Cadê o suco de maracujá do marajá que comeu manjar sem ser de maracujá?”


 Pai, eu acho que vou desmaiar igual na novela. — Dramatizou Júlia para o já desmaiado Marcel.          

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