"Whisky ou água de coco, pra mim tanto faz."
Foi naquele dia, ao pedir a bebida ao garção da churrascaria, que notei algo pela primeira vez em meu melhor amigo. Um amigo de infância, de inúmeras conversas, de desabafos sem fim.
"Carlão, pede os dois juntos, vamos partir logo pras carnes." - Comentei ansioso.
"Eu quero sempre mais!" - E virou o sinal verde na mesa pra que fôssemos servidos.
Este parceiro, o Carlos, sempre pontuou as falas com uma calmaria tibetana; uma sonoridade de sino longínquo. Me foi de uma ignomínia tremenda, posto que, se de fato ele sempre fez aquilo que eu percebera, sem nunca me revelar o cacoete (ou seja lá o nome dado a isto), que me pôs estático desde a primeira mordida na comida até hoje, meses depois. O fiz falar mais e o escutei como nunca antes, pecaminosamente de minha parte, que mesmo nos desabafos importantes da vida, jamais prestara tanto apuro como naquele momento.
"Como está a picanha, meu caro?"
"Se eu falasse a língua dos anjos... Hum" - Ergueu o garfo em minha direção, triunfando um naco do suculento corte.
"Espera, não entendi. Tá boa ou são anjos caídos?"
"Olha, isso aqui tá muito bom."
Continuei comendo. Juro que foi o intervalo de duas garfadas e ele continuou.
"Isso aqui tá bom demais."
Recapitulei o passado na cabeça, muito brevemente, pois já me estava claro. Quando ele terminou um namoro de meros dois meses, disse-me, entre soluços de cachaça, "o amor é o calor que aquece a alma". Tudo que ele dizia era assim.
"Pode parar, Carlão. Chega." - Soltei o garfo no prato. Puto.
"Nós somos quem podemos ser, Sérgio." - Deu de ombros, mastigando um punhado de fritas.
"Somos nada, cara. Você não tem personalidade nenhuma. Cara, que bizarro. Como que nunca me dei conta. Na oitava série, puta que pariu, no último dia de aula eu te perguntei: "E aí, qual faculdade vai entrar?" E você teve a cara de pau, ou a genialidade, sei lá, to confuso, sério. Enfim, disse: " Essa vida é jogo rápido. Para mim ou pra você. Mais um ano que se passa. Eu não sei o que fazer." E você encheu o olhão de lágrima e eu consolei. Porra, cara."
Ele parou de comer. Foi a última vez que eu o vi. Hoje eu sei que minha reação foi idiota. Era um caso muito raro, uma situação fora do comum. Perdi a chance de cultivar aquela excentricidade de sua pessoa. Sinalizou para o garçom.
"Sérgio, meu amigo de fé. Quem ocupa o trono tem culpa. Quem oculta o crime também. Quem duvida da vida tem culpa. Quem evita a dúvida também tem. Somos quem podemos ser".
"Mais um whisky, senhor?" O garção apontou para o copo, olhando para o Carlos.
"Mais uma dose, é claro que eu to afim." - Ele respondeu.
"Diga, por favor, por que você fala assim?"
Ele arranhou a garganta, tirou uma nota de cem da carteira. Levantou-se. Sorriu. Porra, faz tempo que não vejo esse cara. Colocou a nota dentro do meu prato e, antes de ir embora, soou professoral e paterno, ainda que rancoroso: "Caminha pela trilha que leva por outra trilha, Sérgio. E lá você vai ver a queda d'água; e que senhora queda. Lhe peça pra limpar do mal que a tanto tempo assola a Terra. Pra saber só quem erra que sangra o pé na subida da serra".
Perdi a fome. Não entendi porra nenhuma. Hoje, tanto tempo depois, tô aqui pensando com meus botões em cada passagem que aquele figura utilizou da rima dos outros pra discursar. Tenho o numero mofado do celular dele. Será? Como que ele se vira pra atender a bosta de um telefonema qualquer? Vish. Disco.
"Alô, Carlão? Adivinha quem..."
"Você me ligou naquela tarde vazia. E me valeu o dia .Valeu o dia! Valeu o dia! *Bip*"
Caixa postal. Graças a Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário