O velho assistente Douglas Matrato apertou a fivela de arame da gaiola
de patos e a ergueu com esforço na traseira da caminhonete.
- Madame Rita Rica Sá aguarda-nos, pontualmente, para as dezoito horas.
A camisa pólo do velho assistente, em listras azuis e amarelas,
agarrou-se de tal forma à gaiola que se desfez quase por completo quando
a estrutura quicou na borracha do veiculo. O psicoterapeuta Marcus
Bono Pino, formando da turma de 58 na universidade Bobone, com três de
quatro citações possíveis no quadro de prodígios mantido pela
instituição, levou três dedos finos e brilhosos à frente de sua boca.
Emitiu um estalo agudo que por toda sua vida foi o máximo de que poderia
expressar numa risada.
- Vai ter sopa?
O doutor girou a aba do seu panamá e bateu a ponta da bengala no chão,
arremessando três pedrinhas em seqüência, razoavelmente longe.
- Mas obviamente teremos sopa, caviar, lagosta e mais. Exceto pato,
definitivamente não os teremos. Não mencione patos, não discuta patos,
não aluda a patos, não cheire a pato, não se movimente como pato.
O velho fechou a tampa e fungou suas axilas.
- Impossível não cheirar igual a estas aves depois de carregar mais de trinta gaiolas. Passemos em casa e tomarei uma ducha.
- É compatível – Respondeu o doutor conferindo seu Dumont.
Dezoito horas na mansão da
Madame Rita Rica Sá. A construção de ares coloniais, isolada da
vizinhança por metros e metros de um jardim bem podado e diversificado,
ladeado por dois caminhos de pedra mármore, um rústico para veículos e
outro polido, para elegantes passeios ou saídas furtivas para a
cidade. Postes de ferro se multiplicavam em tamanhos diversos para
sustentar os globos de iluminação, alternando a luz até a entrada
principal.
“Pim, Pim, Póm, Póm, Póm, Pim”.
Soou a campainha.
Abriu a porta um homem baixo e careca, vestido num puído casaco de
camurça, um jornal debaixo do braço e careta de poucos amigos.
- Boa noite.
- Doutor Marcus Bono Pino, psicoterapeuta cinco estrelas.
- Boa noite e até breve, doutor.
O pequeno homem caiu ligeiro pela esquerda, tão rápido quanto à seca
saudação, abandonando o psicoterapeuta cinco estrelas e seu assistente.
Prontamente o “ploc, ploc” dos saltos da Madame Rita chegaram até a
entrada.
- Doutor, que prazer recebê-lo em minha humilde residência. Como me foi
instruído, dispensei Weberklein, o mordomo, que acaba de passar por
vossa pessoa. Também liberei as demais criadagens, Alzira, a
cozinheira, Almir Cavalo, o jardineiro e Toloco, o meu descanso de
pernas.
- Perfeito, minha cara Rica.
Atravessaram em marcha imperial por dois extensos corredores ornados por
quadros de Miró e Cavalcanti. As portas, coadjuvantes do trajeto,
todas elas cerradas e rotuladas com pequenas placas, advertiam que
“Esta noite é a noite da superação”. Por fim, despontou a sala de
jantar.
À meia luz de candelabros italianos, a mesa de vidro retangular coberta
por um delicado linho de cor vermelha, os pratos de porcelana grega
repetiam o padrão de pintura, três damas segurando ramalhetes de açucena
num campo verde, esperando a sopa, a salada ou a carne. As panelas de
bronze também já dispostas liberavam o aroma da culinária. Sem os
serviçais, cada um colheu o seu bocado entre variadas opções. Doutor
Marcus rodeou o tablado servindo o cabernet sauvignon.
- Quando quiser doutor, estou preparada para a parte pratica.
Na saleta da lareira, doutor Marcus Bono Pino riscou o terceiro fósforo para dar continuidade à brasa de seu cubano.
- Ao assinar este documento, madame, estará concordando com o
procedimento psicoterápico que empreenderemos nesta noite. Estará
sujeita a todas as metodologias que aplicarei.
Ela apertou o vestido violeta e sentou-se com os quadris largos no braço da poltrona oposta ao psicoterapeuta.
- Confio em todo seu histórico de curas. Confio em teus altos custos. E
me entrego, apesar do terror que me toma às suas experiências.
- Veja bem, o que farei aqui é altamente experimental. Acredito que tua
aversão seja, talvez, a mais ficcional que já lidei. Não existem, até o
momento, registros ou estudos profissionais de tua desordem. Acredito
que a madame está sendo induzida pela fantasia de um escritor, um
desenhista qualquer, que tenha feito alusão ao tema e este passou pelos
seus olhos de forma galopante. Cá estamos para trazer-te ao mundo real.
O doutor espremeu o charuto no cinzeiro de pedra e caminhou para fora da saleta, parando na porta ao lado de seu assistente.
- Confronte, sem agressividade. Confie em si mesma. Você é forte e nada
vai te abater. Fique em teu quarto até as vinte e duas horas. Saia e
ande por toda a casa, ou até onde puder ou ter vontade. Vemos-nos às
oito da manhã. Não se esqueça dos exercícios de respiração.
A mansão, em contagem regressiva para as dez horas da noite,
recepcionou a marcha de patos desengonçados, que o velho assistente
Douglas Matrato desembocou pela porta da dispensa.
- Vamos topetudos, entrando, entrando. Patinho, patão, pata, patona.
E
“quá, quá” pra lá e pra cá.
“Quá, quá”, entrou casa adentro. Grasnaram cada vez mais alto os patos do mato.
Numa guarita, da entrada próxima ao portão, o psicoterapeuta, doutor
Marcus Bono Pino montou guarda e observou de binóculos as janelas
amplas da casa. Dez horas badalaram. Madame Rita Rica Sá calçou sua
pantufa de veludo e apertou a cinta de seda da camisola púrpura.
Respirou fundo e abriu a porta.
Douglas lançava por todo o andar debaixo punhados de insetos, moluscos,
peixinhos, e grãos. Bateu os braços, curvado ao chão e os patos
trombaram uns nos outros e nas paredes, desordenados, sempre adiante.
Pedaços de batata no pé da escada. Dez horas e dez minutos, era hora de
cair fora.
- Os procedimentos foram executados?
- Certamente, doutor.
- Fechou a porta da dispensa?
- Esqueci, doutor.
Doutor Marcus espremeu as linhas de sua testa e Douglas girou os dedos impaciente, ciente de sua falta.
- Volto lá?
- Não, deixe. Estarão os patos distraídos com a comida.
Deixados os patos e a comida, restou a madame Rita apalpando o corrimão com as palmas suadas.
“Flap, flap”, ela escutava logo abaixo.
- Asas! Óh, Deus, o ruído de asas!
O coração da balzaquiana trotou ligeiro, vibrando sua garganta. A
respiração soprou na boca seca. E pequeninos olhos negros como caroço de
mamão despontaram no último degrau. A madame soltou um tonificado “
Úúú” pela boca, recostando-se na parede. O pato mascava meia carcaça de peixe.
- Olhando minhas pernas. Maldito a olhar minhas pernas.
Ela contorceu-se, os nervos paralisados. Inspirou e expirou. Lembrou
das inúmeras passagens pelo consultório do terapeuta, o plano para um
confronto cara a cara com o motivo de sua fobia.
- Hoje ou nunca. Vamos lá, Rita Rica Sá.
Deu quatro passos e pulou direto
ao quinto degrau da escadaria. Infelizmente escorregou em um
agrupamento maligno de mexilhões. O desbunde acabou já no corredor
térreo, atiçando cinco topetudos que esvoaçaram como puderam para não
serem esmagados. Rita, de face amarela, ergueu-se levando
alternadamente um pulso e logo o outro pulso em direção a testa.
- Ai de mim. Não consigo mais. A dor, o horror.
O horror, logo o panorama do inferno grafou-se em sua frente, por todo o lado. Patos, patos e mais patos.
“Quá, quá, quá”. O grito alcançou a guarita e despertou o doutor Marcus e seu velho assistente Douglas Matrato.
- Opa, começou. Opa, vamos lá.
- Doutor, como faremos?
- Não faremos nada até as oito da manhã. E já fomos pagos. E mais do
que todo este trabalhão, teria que cobrar mais e a mulher está falindo,
com seus quadros e toda sua gordura.
Posto que o doutor nada fizesse, Rita afogou-se num ataque de pânico.
Gritou e correu como os próprios patos do mato, selvagem e balançando
seus pés desengonçadamente com o veludo fino das pantufas resvalando
nos bicos duros e sujos dos bichos.
- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!
Louca, com os olhos de caroço de mamão por baixo de sua camisola,
tentando conquistar suas coxas. Sentiu a primeira bicada, um belisco
leve e o grasnar da vitória dos patos.
“Quá, quá, quá”!
- Ainda não!
Chutou a bunda de três patos retardatários que se empanturravam com
milho, derrubou dois Miró e quatro Di Cavalcanti. Finalmente,
esbaforida, cruzou a sala de jantar e deitou na mesa de vidro. Caiu a
louça grega no chão, coisa que irritou os patos.
“Quá, quá, quá,quá,quá”.
- Socorro, doutor Marcus. Socorro, bom doutor.
A súplica chegou redonda na guarita e prontamente Douglas levantou-se.
- O que está fazendo, meu velho?
- Oras, não ouviu?
- Ouvi algo que faz parte dos tratamentos mais ousados e bem sucedidos. Continue o pife. Vamos, meu velho.
Os patos abriram um semi-circulo ao redor da mesa e interromperam a
nojenta refeição no meio da bagunça. Madame Rita deslizou na mesa
encharcada com abundante suor, ao tentar se por de pé. Ouviu então um
grasno cavernoso e mais outro e outro. Saltaram das estantes de
cristais, os patos mutantes, medonhos, gigantescos.
Os patos gordos, que alimentam grandes famílias, saltaram com suas
carecas vermelhas e o peito explodindo em um marrom opaco. Caíram em
pares na mesa de vidro. O pranchão, tão grosso, não suportou o
bombardeio e partiu-se em quatro, levando ao chão estilhaços, Rita e os
patos gigantes, suculentos, mutantes.
“Ao ataque” diziam aqueles olhinhos diferentes,
azulados, craquelados.
- Cruzes! Santo Antão.
Rita Rica Sá teleportou-se da sala de jantar, com cortes por todo o
corpo, descabelada, espavorida. Como um trem bala, zuniu na cozinha e
agarrou o primeiro cutelo pendurado ao lado dos famosos salames da
colônia de Witmarsum.
- Desgraça fedida.
Varava o vácuo, tilintando em panelas. Com pequenos avanços, patos
loucos foram golpeados e sucumbiram por cima de batatas e temperos.
Penas duras salpicaram o campo de batalha.
- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!
A grande pata choca, enfurecida com a morte de seus amantes, galgou até
os peitos da Madame louca e os buzinou com um bico voraz. As unhas de
Rita, esmaltadas em rosa grená, estrangularam o pescoço da ave e esta
borbulhou vestígios de ração até o último grasnopiro, o derradeiro
suspiro dos patos amaldiçoados.
Já em frangalhos, o medo
corrosivo das criaturas destrambelhadas, deu lugar ao ódio, a fúria, a
coragem de uma mulher posta em grande perigo mental. Agarrou o pequeno
botijão de uma lamparina empoeirada e riscou o cabeçote do fósforo. A
mulher e sua tocha, endemoniada pela casa, soltando os lampejos do bafo
do capeta nas penugens do caminho. A luz do fogo destacou-se nas
janelas e a silhueta chamou a atenção dos vigias.
- Esplêndido, Douglas. Como uma pintura em um churrasco caipira. A mulher finalmente assumiu o comando.
Oito horas da manhã. O psicoterapeuta Marcus Bono Pino encaixou o
chapéu panamá e flutuou como um lorde até a dispensa da mansão. Douglas
saiu de dentro da casa e reportou a situação.
- As paredes chamuscadas, a tapeçaria em frangalhos. Objetos inúmeros,
em cacos. Incrivelmente, todos os pobres patos mortos. Alguns varados
por flechas, outros tostados, decepados, retorcidos, pisoteados,
depenados, alguns pendurados e torturados com grampos. Na cozinha, há
um pato com ervas e batatas, parcialmente cozido.
O doutor espargiu sua risada afetada de um só estalo. Bengalou três
pedrinhas no chão e ergueu uma samambaia que estava caída na saída da
dispensa.
- E aqui está a corajosa, a vencedora, madame Rita Rica Sá. Descansando em sua glória.
Rita afastou o cabelo de seus olhos e sorriu com dentes trincados. Douglas empunhou o braço vermelho dela e endireitou-a de pé.
- Parabéns, madame. O caminho era de pedra e você foi uma das poucas a traçá-lo.
Ela piscou inúmeras vezes antes de se pronunciar.
- Patos, patos, patos. Adeus patos. Adeus doutor. Curou-me.
Recomendo-te. Teu custo alto me salvou. Recomendo-te. Melhor não há.
Patos, patos, patos. Melhor não há.
Com uma gorda gorjeta em mãos, o velho assistente Douglas deu a
partida na caminhonete. O psicoterapeuta satisfeito, bocejou
sonolento. E a madame, ela espalhou aos quatro ventos sobre os bons
serviços prestados. Dizia sempre, no chá da tarde, em meio à reforma da
mansão, para seletas amigas.
- Não se afobem em manias, não se percam em fobias. Ele é bom e eu recomendo. Quer mais uma fatia, Madame Blavatsky?
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