segunda-feira, 4 de agosto de 2014

VERTER

O líder discursava à sua turba:

" De nossos próprios corações obtemos o cálice maior da pós-vida. A insegurança que habita nosso invólucro será execrada. Regressamos no pó do pó. Paz, como uma manta, a tudo preencherá."

O nome era Beatriz. Dezoito anos de um corpo curvilíneo, moreno e tenaz. Seus olhos castanhos oblíquos eram grandes e expressivos. Olhos que piscavam em câmera lenta em direção ao púlpito. Púlpito azul claro, coberto com seda vermelha; repleto de jovens estigmatizados, despidos e enfileirados. Palavras sobre a verdade; que doíam, brotavam em um mantra interminável, indelével.

" A família externa é só, e assim foi por muito tempo, uma base borrada, à parte da verdade nua, primordial. Verdade una que te traz à família final, fraternal. Somos a cópula de amor. Final, una, fraternal, nua."

O coral suave repetia estas palavras firmes. Quatro cantantes de tessitura alva, hipnotizante.
A melodia percorria o salão pobre, de paredes descascadas. E os pés de cinquenta pessoas pisavam a terra batida e o corpo balançava num ir e vir sem sair do lugar.

"Já sabem. Já tem certeza. Seus pulsos firmes têm a decisão que lhes propicia uma eternidade tangível, confortável. Não cansa mais a procura do arroz e feijão, o abate da galinha, do porco, do boi. Vocês sabem que a verdade da fome é um câncer perigoso. Não é natural viver buscando o ouro para mastigar a comida. A natureza fornece o que comem aqui. E aqui, quantos cansaram o corpo por abater a galinha, o porco, o boi? Ninguém. Nenhum. Por que é tudo unificado. Somos um pensamento universal."

Rostos sorriam, armados com dentes amarelos. Balançavam mais e mais. Beatriz ergueu seus braços finos, escorregou os dedos nos longos cachos. Estava feliz. Mais que um sorriso, ela ria. Risada aberta, honesta.

" Há meses lhes foi entregue a chave da verdade. A liberdade plena. O coração liberto. Somos especiais. Preparados para a grande viagem que a Luz nos preparou. Eu sou feliz, sou transbordante, pois a Luz visitou meu corpo sacro e através dele me faço de instrumento para que cada um de vocês prove a verdade. Caminha só quem tem o passo certo. Se você esta aqui, sinta meus olhos na sua alma. Sinta a unidade."

Sol ardente, escorrendo as três da tarde nas janelas grandes e gradeadas do salão. O matagal alto, parado pela ausência do vento, ia de uma planície a outra. Terreno irregular, difícil de definir. No cenário picante deste isolado local, cinco homens corriam selvagens, tropeçando e arfando. O retardatário, mais obeso, com olhos vermelhos e suor abundante, olhava com semblante preocupado para o céu. Ele avisou roucamente os que estavam à frente:

Urubus no céu. Urubus em circulo. Vejam!

Não comentaram a observação. Nem ao menos tiraram o olhar do mato alto. Apertaram a corrida. O topo de um telhado cinza surgiu, metros à frente. E a visão se ampliou. Cruzaram com uma placa de madeira espetada num tronco de arvore podre, a escrita era à mão, lia-se com letra tremida: “Luz Eterna”. Já sabiam onde estavam. Eles conheciam o símbolo abaixo das letras, uma estrela com uma meia lua no centro.

Ah, meu Deus do céu. Ah, meu Deus do céu. Proteja minha criança. Não vai dar tempo... Não vai dar... Meu Deus, por favor.

O homem que ia a frente de todos, orou com voz embargada e olhos lacrimosos. O rosto moreno desmanchava-se em dor. Contrario ao corpo firme, resoluto nos passos corridos que dava.

Tenha fé. Tenha fé, amigo! Vai, vai, vai...

O templo! Olhem lá.

Galinhas saltaram cacarejando; batendo asas e trombando nos homens. Porcos e bois que dividiam o mesmo cubículo de lama, alvoroçados com os recém-chegados, fugiram para dentro do matagal. Corpos putrefatos podiam ser vistos, mal enterrados que estavam, exalando carniça e assustando os homens.

" Vamos irradiar a força do cosmo. É hora de atravessar o principio da Luz Eterna. Abençoados. Vocês são todos abençoados! Flutuem até minha alma. Flutuem até minha alma. Flutuem!"

Correram pela lateral do salão. Um deles começou a bater no vidro, passando de janela em janela. Batia no vidro, puxava a grade. Forçou a visão para o lado de dentro. Havia muita gente. Num púlpito improvisado com caixotes, um homem magérrimo, cabelos desgrenhados, seminu, apareceu em êxtase, discursando algo ininteligível.

Beatriz? Beatriz? Minha filha? Ele retirou um revolver da cintura. Beatriz Sansamariana?

Todos os cinco sacaram revolveres. Só havia uma porta lateral, lacrada por tábuas grossas e acorrentadas.

" A minha família é a unidade da verdade que nos completa até hoje, aqui, no solo sagrado. É aqui que nossos corpos vão ficar! As carcaças sem brilho. Espera-nos a Luz Eterna."

Gritaram os adeptos:

“Luz Eterna”
“Luz Eterna”
“Luz Eterna”

Galões de cem litros, impulsionados por vários voluntários, foram derramados no chão de terra batida. Beatriz retirou a camisola. Todos os presentes retiraram suas camisolas idênticas, brancas e surradas. O salão fedia à gasolina, empapada na terra vermelha. No púlpito, o guru gemeu alto, de olhos fechados. As cantantes do coral interromperam sua melodia de vogal única. Emborcaram  gasolina sobre seu líder.

Beatriz! Por favor, Beatriz! Sou eu... Seu pai, Beatriz. Beatriz! Aqui, Beatriz!

A jovem virou o rosto na direção do pai desesperado. Seus olhos estavam vazios. Ela deitou no chão. Todos deitaram. Esfregaram-se no lamaçal.

Desgraçados... Desgraçados... Filhos da puta! Desgraçados! Ah, Pai do céu! 

O pai se pendurou na janela, tentando clarear sua visão da filha no meio da maçaroca de corpos. Os outros quatro homens já quase colocavam a porta ao chão.

" O ser carnal e o ser espiritual são unos. Meu exterior é como o seu. O meu interior é como Deus. Seu interior é um reflexo do meu. Mas a Luz pede que nosso interior volte ao conjunto. O interior e o exterior não podem mais ser diferentes. O caminho sou eu. Seu corpo é meu. Sou você. Você é Deus."

Atirou duas vezes pela vidraça, em direção àquele que discursava com tanta veemência. Acertou a cabeça e o estômago do homem. A porta finalmente foi ao chão e o templo invadido pelos homens. O vidro, estilhaçado pelo disparo, caiu sobre seus olhos que piscaram para revelar um caleidoscópio trocando as cores. A luz clara e quente do sol invadiu profundamente aquele salão. Seguiu um estampido alto e um calor insuportável. Todos os vidros estouraram ao mesmo tempo. Gritos pavorosos surgiram junto com gemidos. Corpos pegavam fogo, debatendo-se porta a fora. O pai, lançado de costas ao chão duro, todo chamuscado, procurava a silhueta da filha nas bolas de fogo. Caíam as lágrimas de desespero. Era tarde demais! Era tarde demais...

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