sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Frisson

 

 

Pairando no céu da cidade, duas almas, uma delas vagando no umbral por muitos anos e a outra, recém-desencarnada, conversam enquanto observam a movimentação do cotidiano.·.
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“Já deve ter notado nossa perda de sensações. Com o devido tempo, você vai preencher esta lacuna com diversos maneirismos do espírito.”

“Não parece que vou me acostumar. Tudo é tão moroso.”

“Observe. Vou pôr-me de modo agradável através do corpo de alguém vivo. O que farei a seguir, nos permite um modo contemplativo,  trazendo algo de pacifico às nossas leituras visuais. Não sei explicar ao certo os motivos. Apenas observe.”





O fantasma  desceu das alturas da copa de uma arvore, suavemente, posicionando-se ao lado de uma jovem garota que prestava atenção às palavras de seu namorado,  enquanto ambos tomavam café no balcão de uma padaria. O espírito novato posicionou-se à frente deles, sendo perpassado por diversos transeuntes.

“E então?”

“Não sei como você vai encarar essa descoberta. Eu, quando me foi apresentada, fiquei espantado. Vá lá.”

Aquela alma antiga entrou lentamente pelas costas da jovem garota, alinhando sua silhueta a dela. O fantasma novato pôde ver olhos sobre olhos. Aquele que a encarnava abriu a boca e, subitamente, a garota bocejou. Olhos sobre olhos, boca sobre boca.  Ela arqueou as costas para trás, os braços tesos para frente; e assim o fantasma a deixou. Logo em seguida um terceiro espírito surgiu atrás do namorado da garota, sorriu bargante para o fantasma novato e entrou também no rapaz, permanecendo mais tempo que o outro, que havia visitado a garota.  O possesso bocejou sonoramente, lacrimejando e estralando as costas.

“Quer dizer que o bocejo é um engodo? Isso é para mim a mais pura definição de esoterismo.”

“Sim, basicamente.  E aqui deste lado, nos é um vicio justapor nossa forma e então trespassar. Sinto-me realizado. Fantástico. Olhe bem ao seu redor, pode ver a cada instante um de nós entrando brevemente na vida de alguém. Acha pérfida a rápida permuta?”

“Acho pouco natural. Bocejar parecia uma serenidade humana e não uma ação fruto de um gatilho além-túmulo”.

“Bocejar é uma irrupção dos perenes que não altera o destino, um algo fleumático para ambos os lados. O mais importante; é aquilo que nos dá prazer, sem ofender”.

“Mas algo faz.”

“Faz em nós?”

“Faz em quem vive.” Revelou o novato.

“Faz o quê, novato?”

“Suscita a troca de assunto.”

“Tem razão. A vida segue, é posta em movimento. Após o bocejo, penipotentes eles vão".

“As vicissitudes de nós, fantasmas, estão à guisa de iliçar a carne viva? Então, mãos à obra, meu caro guia. ”

O novato fantasma foi até a jovem garota e tentou por si próprio a indução do bocejo. Ela então benzeu seus lábios enquanto estes se abriam, desenhando o sinal da cruz. Imediatamente aquela alma foi energicamente expelida. Girando em ascensão até parar como uma pluma por sobre o toldo da padaria.

“ O quê?” Surpreendeu-se o novato.

“ Ah, apenas um truque quântico-espiritual. Não dói, não é?”

“ Foi breve, mas foi divertido. O que mais temos?”

“ Quem vive, dorme”.

“Obviamente óbvio.”

“Agora vou te mostrar que delicia que é, sopitar um vivo em algo que eles chamam de cochilo”

“Evoé!”
*

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

As suculências



"Meu noivo foi num churrasco e disse que eu não poderia ir. Um churrasco apenas para homens"

"Ah, que esperto. Um baita sacana."

"Foi o que pensei, amiga. Que ele ia farrear com alguma vadia. Ainda que foi num sitio, acredita?"

"E você permitiu?"

"Sim. Mas o segui."

"Oh, pegou ele no flagra?"

"Sim. Esperei um tempo antes de entrar. Fui até a porta, contornei a varanda. Estava tocando um pagode antigo em alto volume."

"E então?"

"Bom, segui até os fundos e os vi."

"Cercados de vadias?"

"Não. Apenas homens, estavam agachados formando um circulo. Fazendo ruídos horríveis com a boca."

"Meu Deus! O que eles estavam fazendo?"

"Oh, amiga, foi tão nojento."

"..."

"Eu dei a volta sem eles perceberem e quando os vi de frente..."

"Oh, amiga, oh..."

"Eles estavam chupando... Chupando como porcos... Chupando ossos de uma costela assada."

"Nojo! Oh, Deus, que nojo!"

"Eles chafurdavam aqueles ossos gordurosos e quentes na barba e em toda a bochecha, mordiscando carne e lambendo os dedos. Senti que eu ia desmaiar. Gritei, apavorada!"

"Amiga, sinto muito"

"Foi horrível, foi pavoroso. Eles me viram, assustados, saíram correndo em diferentes direções, carregando seus ossos de costela de boi. Meu noivo veio em minha direção, limpando aquela gordura temperada com os pulsos. Pediu mil desculpas."

"Aquele porco, tsc"

"Conversamos. Prometeu-me que nunca mais faria coisa semelhante. Dei um voto de confiança."

"Vamos ver."

"Sim, tomara. Amiga?"

"Sim?"

"Assoa o nariz que tem brigadeiro dentro dele."

"Delicia"