quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O encontro com Aniversário





Leonardo rolou para fora da cama ainda embolado em seu edredom. Caiu com os pés encaixados em um par de chinelos. Pôs-se de pé como uma cobra, sorrindo com olhos miúdos em direção ao facho de sol que penetrava pela janela. Arrumou-se com um traje esporte, apertou o relógio digital no pulso e foi à cozinha.



Bom dia, mãe.



Bom dia, Leo.



Ele apertou uma tangerina do cesto e rasgou a casca com o dedão.



Parabéns, meu lindo. Feliz aniversário.



Sua mãe o abraçou com carinho e ternura. Acariciou seu rosto liso e beijou-o na testa.



Valeu. Tem presente ou é só abraços e beijos?



Claro, seu apressado. Já que está cobrando. Pode pegar lá no sofá da sala. Espero que goste.



Ele largou a tangerina na mesa e correu para a sala. Desembalou a caixinha deixada pela mãe no sofá e contemplou o DVD.



Fantástico! Fantástico!



Gostou querido? Seu pai disse que você ia adorar esse jogo de guerra. Parece que acabaram de lançar. Foi bem caro. É bom que goste mesmo, escutou?



Pode crer que vou terminar ele rapidinho.



Leonardo foi para o quarto e colocou o presente sobre o videogame. Voltou à sala e ao abrir a porta da rua sua mãe o chamou.



Léo! Querido... Vai aonde?



Mãe, hoje é o meu dia, que dia mais feliz! Parabéns, parabéns!



Leonardo riu do tom de seu cantarolar.



Certo então, Léo. Vai passear. Mas não fica na baderna com os amigos e volte antes do almoço, pois sua avó virá aqui te dar um beijo e a noite seu pai vai te levar pra sair não sei aonde. Não vá beber, escutou?



Tchau!



O clima estava fresco, o sol deliciosamente brilhante e as ruas quase vazias naquele sábado singelo. Léo comprou cigarros na padaria da Matriz. Riscou três fósforos, até que entrou na viela para bloquear o vento e acender um deles com propriedade. Soltou a baforada e arrepiou-se. Sentiu a tontura da primeira tragada matinal. O sol rebitou seus olhos por um segundo e, no caminhar de passos largos, o pé esquerdo enroscou-se num arco de aço.


Estavam lá um montinho de areia e uma pilha de tijolos, da obra improvisada por um morador da viela. Enquanto Leonardo caía, numa fração infinitamente curta de tempo, sentiu um frisson estranho. A pupila captou o contorno das pontas de lança voltadas em direção a sua cabeça. Pontas de lança que estavam presas nos pedaços de tijolos. Tamanho foi o aperto no peito que acometeu Leonardo, que as mãos agarraram duas lanças cada uma e seu corpo parou em perpendicular.

No baque da queda que fora interrompida, junto à dor do rasgo  na pele da mão, Leonardo viu um vulto saltar do ombro direito. Um vulto que, aos poucos, tornou-se nítido para o garoto. Um algo disforme, despido e sem sexo, de cor verde, reluzindo fracamente. Leonardo, estupefato com a situação e, a partir daquele instante, não sentiu mais a dor nas mãos feridas. O ser verde permaneceu longos minutos o encarando com olhos brancos. Leo chorou silenciosamente e após engolir a bola em sua garganta, juntou toda sua coragem para indagar a estranha aparição:


Quem é você? O que é você? Pode me ajudar?


O ser moveu-se pela primeira vez desde que a situação se engendrou. Caminhou para o lado de Leonardo e sentou-se no monte de areia. Nestes curtos passos, o corpo transparecia, de forma anuviada, a paisagem urbana do beco. Ao tocar os quadris na areia, parte desta flutuou pelos pés e estômago da criatura. A voz, levemente anasalada, ressoou com gentileza:



Olá, Leonardo! Sou uma energia vinda de outro acorde dimensional. Tu me conheces pela alcunha de “Aniversário”. Não sou uma divindade. Não faço parte de um pensamento coletivo que me coloque nas barreiras do bem e do mal, como vocês as definem. Cabe a mim, por prazer e convenções antigas, lhe assistir em todos os dias de seu nascimento. E, no momento, eu ainda não posso ajudá-lo. Talvez não o faça, de qualquer maneira.


O garoto gritou desesperado. Tomado pelo medo, Leonardo clamou pela mãe.


Pelo amor de Deus, socorro! Mãe! Socorro!


Estamos num tempo fixo, fora de sua dimensão. Você esta perfeitamente invisível e inaudível. Tenha paciência. Verá sua família de uma maneira ou outra. Tenha calma, eu aguardo junto de ti pela decisão.


Após uma espera extenuante, ele pôde engolir um fio de choro e, com os olhos vermelhos e inchados, tomou a palavra para si naquele silêncio opressor:


Eu estou morto. E estou no umbral e você é um demônio ou um anjo. Meu corpo está paralisado e não sinto dor alguma, mesmo que olhe para minhas mãos e as veja cravadas neste par de pontas de ferro imundas. E você espera eu tomar consciência disso?


Pelo contrário. Está vivo! E me surpreende deveras! Tua força de vontade foi tão forte no momento em que se deu a queda, que a vida, já no sentido natural dos eventos, emaranhou-se numa teia de improbabilidades. E assim, nossas vibrações dimensionais, por um microssegundo, tocaram-se. E eu não pude me esvanecer. Portanto, estamos aqui. 


Você está dizendo que eu iria morrer hoje?


Possivelmente. Mas é muito prazeroso sentir a forma humana da Vontade. Quase posso vê-la. Permanece, no entanto, em outra dimensão.
 

Como assim? Você é o Aniversário em pessoa?


O ser riu abertamente e posou uma mão sobre o ombro de Leonardo.


Sou isto mesmo, que vocês nomeiam como: “Aniversário”.


Ele novamente debulhou-se em um choro forte, reforçando os clamores pela figura materna. Aquilo que se apresentou como Aniversário, passou a mão no próprio peito que possuía uma bola alaranjada e esfregou em seguida os dedos leves sobre a cabeça do garoto, soltando um liquido que logo evaporou. Leonardo foi preenchido em seguida por uma sensação de calma e alegria que o emudeceu.


Nomenclaturas, Leonardo, são palavras construídas pela necessidade de comunicação e sobrevivência do ser humano ao longo de sua necessária evolução. Pontos chave da vida, como nascer, morrer; e as passagens que vocês absorvem como rituais: amar, odiar, desejar. Enfim, todas as suas representações arquetípicas, mas em outro plano. Sou uma energia racional que domina os impulsos necessários para contemplar e comemorar o nascimento de cada ser habitante deste tempo. Sou mais antigo que seu primeiro pensamento sobre o que é antigo. Não... Eu sei que pensa em religião. Mas não posso abranger nosso encontro enquanto seu caminho não for ponderado.


Ponderado por quem?


A única vez que um humano conversou comigo, foi por um descuido em um dia especial. Era aniversário de um pescador solitário no interior do Canadá e quando raiou o dia, tive a agradável surpresa de visualizar o Amor sobre um lago parcialmente congelado. Era a primeira vez que nossas vibrações se equiparavam ao mesmo tempo. E aquele azul profundo de contornos vermelhos acenou gentilmente para mim. Claro que, mesmo com minhas percepções lúcidas, logo fiquei fraco, pois aquela visão me consumiu. No mesmo instante o velho pescador acertou-me com uma machadinha. Afinal, lago congelado não permite pesca. Seria muito trabalhoso cortar o gelo sem uma machadinha.
 

O amor?


Sim. E naquele dia conversamos sobre tudo na vida. Foi contra a regra, mas foi por amor. E tudo é perdoado por amor. O Perdão mesmo, ele é tão cinza...


Estamos quebrando a regra?


Tantas perguntas, Leonardo... 


Você pode me retirar daqui e me pôr em casa. Meu pai quer sair comigo e minha mãe e minha avó vão chorar muito. Eu quero tanto viver. Por favor!


O Aniversário flutuou.


Estou sentindo que nossa espera chega ao fim. Fique calmo, Leonardo. Está entre amigos e não haverá dor.


A mão verde empurrou de uma vez a cabeça do garoto e esta atravessou o ferro pontiagudo. O restante do corpo caiu ao chão com um baque seco. Neste momento, na entrada do beco, uma senhora derrubou as sacolas e gritou por socorro.


Não nos veremos mais, que pena! Foi um prazer, Léo, desde que você nasceu!


O garoto levantou o peito do chão e puxou seu crânio com violência da estrutura fatal. A dor excruciante tomou conta de seu corpo. Uma voz diferente, uma voz nova e potente fez-se ouvir por trás de sua orelha direita:


Livre-se da dor. É só um resquício de sua carne. Conheça sua nova vibração. Limpe sua mente. Sinta-se lisonjeado pelo encontro com o Aniversário. Mas agora, decidi o levar. Conheça-me! Compartilhe!


Leonardo virou o rosto para trás e não mais sentiu medo ou qualquer sentimento ao ver o que estava ao seu lado.


Eu poderia apostar que você tinha essa cor! Bem que poderia! – Observou Léo, com felicidade na voz.

E ambos sumiram em uma fenda colorida no chão.
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