quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Como* um cavalo louco



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Pisei na poça matinal. Pisei com gosto. As gotículas meio esgoto, meio chuva de verão, voaram até o meu joelho. Graças à impermeabilidade de meu sapato, a meia foi poupada. Não sei como agir após pisar numa poça, pelo menos não racionalmente. É instintivo, uma blasfêmia breve e o chacoalhar da perna para livrar-se do excesso. Contemplei meu próprio azar. Neste momento irritante, uma freada e uma buzina esganiçaram.

O vidro do carro vermelho abaixou e o som alto da musica avançou na esquina. Tocava um refrão redundante “uhu uhuhu, uhu uhuhu, uhu uhuhu”. De olhos esbugalhados, tanto quanto os meus quando o vi, um Buldogue Francês arfando com a língua desajeitada no canto da boca. As duas patas no volante, olhando para mim. Disse o Buldogue Francês: “Bonjour garçon, não há tempo para explicar, entre no carro, barf!”

Recolhi o queixo caído no chão e entrei automaticamente no lado do passageiro. Entrei, mas deveria estar trabalhando (Foi a primeira coisa em que pensei). O cachorro tinha urgência; ponderei e relaxei. O carro arrancou e me deu um calafrio ao observar os pedais acionados por grandes tamancos presos com tirinhas de couro nas patas do buldogue.

Então estávamos a toda velocidade na avenida. Aproveitei para perguntar o motivo da aventura. No entanto, a aparente habilidade de conversa do buldogue transformou-se novamente em latidos desconexos e saliva escorrendo em todo volante e em parte do painel. Melhor seria tomar as rédeas do carro, só que antes do controle, fomos executados por um poste. “BAM”... E o airbag me salvou. Menos sorte para o Buldogue Francês, que foi catapultado pelo vidro e rodopiou inúmeras vezes até cair num bueiro. Zonzo, com o nariz inchado, os joelhos em cacos, eu cambaleei para fora do veiculo.

Um pequeno elefante pairava no ar preso por dúzias de bexigas. Disse o elefante: “Não há tempo para explicar, agarre meu rabo”. Agarrei. Fomos lentamente para o alto, rentes a um prédio comercial. Uma das janelas no vigésimo andar foi aberta e uma cozinheira segurou minha perna. “Não há tempo para explicar, pule nessa panela”.

Pulei na janela e em seguida saltei para a panela. Lambuzado de azeite, acompanhei uma reunião política em meio à cebola e alho picados. Um dos mediadores me abordou: “Não há tempo para explicar, entre na urna eletrônica”. Pelo pequeno visor, observei o trajeto por dentro da cidade. Estava armazenado em um furgão, chacoalhando pelas curvas. Pude ver pela janela o prédio onde trabalho. Eu deveria estar trabalhando (Foi o que pensei naquele instante). Fui posto no almoxarifado de uma escola pública. Após um bom tempo, enfezado que fiquei, estourei aquele invólucro e sai pelo pátio do colégio. Um garoto comendo pão com presunto me abordou. “Não tenho tempo pra explicar, entre no meu lanche”. O lanche estava no fim e fui engolido pela criança. Apenas quando estava em sua casa, pude reconhecê-lo, o filho de meu patrão. Antes das dezoito horas, caí na privada. Diversos germes me cercaram e disseram em coro: Não temos tempo para explicar, pule na merda e FLUUUUUUUUUSHHHHH.

Depois disso, incrível, fui parar em meu escritório, oito da manhã, segunda feira. Palhaços invadiram a empresa. Todos ficamos assustados. O elevador abriu em meu andar. Um pequeno fusca saiu dele. Parou ao meu lado. Um palhaço gordo desceu o vidro, bem ao meu lado: “Entre no porta-luvas, não tenho tempo pra explicar”. O fusca foi andando bem devagar pelos corredores enquanto eu me ajeitava. Havia pelo menos vinte palhaços naquele fusca. O gordo motorista arrancou de uma vez e estourou o vidro do décimo segundo andar. Tudo espatifou-se na calçada. A chuva caia gelada. Pisei na poça matinal. Pisei com gosto. As gotículas meio esgoto, meio chuva de verão, voaram até o meu joelho. Graças à impermeabilidade de meu sapato, a meia foi poupada. Não sei como agir após pisar numa poça, pelo menos não racionalmente. É instintivo, uma blasfêmia breve e o chacoalhar da perna para livrar-se do excesso. Contemplei meu próprio azar. Neste momento irritante, uma freada e uma buzina esganiçaram. Ah, sim. Um buldogue francês!

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