Preste Atenção nos Fios do Macarrão
Olavo Mariano amaldiçoou Ferreira de Tarso com tamanha fúria que pequenas gotas de saliva dançaram no ar e salpicaram a mesa da taberna Aleblebê.
— E que morra entalado nesse grude insosso que tem a ousadia de me servir todo santo dia! Paspalho!
Possesso, empurrou a mesa de madeira, fazendo ranger as pernas mal firmadas, e ergueu seu corpanzil, apontando para a jovem servidora de aperitivos da floresta de Grumixama.
— E você, lagartixa risonha? Tá achando graça, é? Sirva-me logo um Vespusiano Lara, copo de boca larga. E capriche na dose — meia medida dessa gororoba eu não engulo mais. Já me basta esse tempero de cruz-credo feito por Tarso.
Um burburinho se espalhou como fumaça pelo salão. Ferreira de Tarso, do outro lado da cozinha apinhada de pratos, carnes e bagunça, ouviu o eco da voz rouca de Olavo e largou a meia pata de cabrito na pedra de corte. Adentrou o salão mal iluminado, limpando as mãos no avental já encardido.
— Muito bem… que desgraça a vossa pessoa traz à minha honesta casa de comilança, hã?
Olavo Mariano, general das tropas de Vovorovovo, arreganhou um sorriso de grandes dentes moedores de novilhos.
— Teu prato do dia, ó gênio dos temperos, fede mais que teu sovaco. A menos que tenha usado essa axila para esfregar as costelas do porco preto antes de botar no forno. Ou, vá saber, peneirado teus molhos com uma rede de pentelhos e carunchos.
Ferreira de Tarso, acostumado a lidar com forasteiros ingratos e mal cheirosos vindos dos confins da floresta, esticou calmamente as mangas de seu uniforme creme-que-já-foi, deixando à mostra o cotovelo ossudo — um gesto discreto e eficaz de ameaça.
— Quem sabe, bravo general, a Estrada Real não lhe sirva melhor aos gostos… e aos narizes.
— De fato, cozinheiro de mão amarela, de fato. Meus homens e eu partiremos para lá. E fique sabendo: tua espelunca só permanece de pé porque estamos com pressa. Mas fica o aviso: o Rei Vovô Vinólio ainda é meu senhor, e meus Touros sempre voltam.
Disse, virou as costas e saiu tilintando a espada contra a malha de aço, seguido por vinte Touros satisfeitos, mas caloteiros, esvaziando a até então movimentada Aleblebê.
Moça Mariana Queteparta, inexperiente servidora da floresta de Grumixama e a caçula de uma longa linhagem de bruxas curandeiras, percebeu num susto que as mesas recém-abandonadas não traziam nem uma mísera moeda de prata. Nem mesmo as raspas de cobre, que ela tanto prezava. Indignada, seu rosto corou, e os pés bateram furiosos contra um barril de Vespusiano Lara, fazendo-o estremecer.
— Que me quebre um Vespusiano Lara de oitenta e oito e eu te mando de volta pra tua avó Senhorinha Mariluce! — ralhou Tarso, arqueando as sobrancelhas. — Não adianta bufar, Mariana. O que era pra ser dia de lucro virou um dia de desaforo. Vou repor o estoque devorado, e os custos… um tantinho pra ti, um tantão pra mim e mais outro pra taberna. Assim é a vida fora da Estrada Real.
Enquanto isso, pela Estrada Real, os Touros e seu general se acabavam de rir.
— E quando o cozinheiro ergueu as mangas? Ah, Mauá, Mauá, Mauá!
— General! — gargalhou outro — Quase chorei de alegria só de saber que não ia deixar nem raspa de cobre de gorjeta.
Um terceiro, rindo a ponto de soluçar:
— Flaviolouco, viu a queridinha que servia a gente? Ajeitadinha ela, hein? Eu dava a raspa de cobre… e mais um agrado!
— Mauá, Mauá, Mauá!
Riram tanto que tiveram de parar e, como bons Touros, esvaziaram as bexigas na beira da estrada. Mas logo as risadas se tornaram caretas.
— General… que cheiro horrendo é esse?
— Mauá… Mauá… espera… pelos deuses, é do meu também!
— Meu jato tá borbulhando nas folhas!
De súbito, um a um foram tombando, contorcidos, sufocados pelo odor agridoce de vinagre e sangue. Olavo Mariano tentou alcançar a rédea de seu cavalo, mas o animal relinchou e se afastou, deixando o general a derreter na própria urina.
Na Aleblebê, Tarso contava pratos e restos.
— Prôpala nos acuda. Que rombo no orçamento. Amanhã tuas tias, Moça Mariana, estarão aqui pro quebra-jejum e não vou ter nem migalha pra oferecer… Sorte que sobrou Vespusiano pro gelo da manhã.
Moça Mariana coçou a lateral da barriga e confessou, a voz trêmula:
— Senhor… peço perdão. Quando o General reclamou, servi-lhe uma taça de Vespusiano… depois os Touros pediram, e eu servi. Aí, possessa, servi mais uma. E antes de você dar as caras lá fora… servi de novo.
Tarso olhou pro teto, balbuciando coisas que nem os deuses queriam ouvir.
— Mas fiz o bem com o mal, senhor Tarso. Na segunda rodada, adicionei Poeira de Vintém. Dancei abraçada ao barril pra misturar tudo. Uma maluquice que a gente, bruxa curandeira, se permite uma vez na vida. Matei-os por dentro. E agora terei de passar a vida curando gente pra equilibrar a conta.
Tarso arregalou os olhos.
— Minha filha… que inferno. Mesmo mortos… eles saberão. E quando souberem, virão atrás. Não estou contente. Que os deuses nos guardem.
Longe dali, o espectro de Olavo capengava entre os Touros pálidos.
— Guerreiros juramentados não caem fácil! Vamos vingar a vilanesca cilada! O veneno veio de onde?
— Da Aleblebê!
— Do cozinheiro!
— Da gostosa!
— A bruxa!
— O cozinheiro e a bruxa!
— Nos serviu dançando!
— Pó de Vintém!
— Pen-te-lhos…
— Vin…
— …gan…
— …ça!
Na taberna, Tarso e Moça Mariana preparavam defesas.
— Mandei um coelho-mensagem pra Vigoroso. Vai chegar mantimento amanhã cedo. Boa notícia, preço salgado, mas boa. Me preocupa é se Olavo voltar…
— Está morto, senhor. Todos mortos. Pó de Vintém não perdoa.
— Mas um espírito traído sempre volta. E quando volta, pega quem estiver por perto. Você, eu, qualquer um. Então vamos selar esta casa!
E selaram. Portas, janelas, fosso, chaminé, até as colheres. A noite desfez-se, o galo cantou, o vento soprou do noroeste. Do lado de fora, a marcha fúnebre de espectros se dissipava, restando só a sombra de Olavo, que antes de sumir apontou um dedo cadavérico para a taberna.
— Parece tudo tão calmo! — disse Mariana.
— Fecha a janela, menina. Numa sopa morna dessas, até alma penada mergulha.
— Relaxe, mestre cuca. Minhas tias chegaram.
— Tranquei a porta direito?
— Com o conjuro da "Minha Mãe Mortinha". Aqui não entra nem o diabo.
Os fantasmas flutuavam, esbarrando uns nos outros.
— General… aquela velha de bengala nos viu.
— Larga essa pedra, seu tolo!
As avós entraram, uma a uma.
— Que saudade, sua linda!
— Que linda!
— Saudades!
Moça Mariana abraçou-as, emocionada.
— Vou buscar pão preto e azeite.
Uma densa bruma se avizinhou da taberna. Dela, surgiam cabeças flutuantes — pálidas, translúcidas, olhos esbugalhados e bocas que nada mais faziam além de praguejar. No alto da névoa pairava o General Olavo Mariano, rosto de pedra rachada, e logo atrás os Touros de Marfim, seus leais soldados espectrais.
— Por que não invade de uma vez, General? — perguntou uma das cabeças.
— Não consigo! Estou estancado, ancorado feito pedra no fundo de um lago. Magia. Alguma bruxaria velha de taverna! Flaviolouco, tente a janela.
O espectro Flaviolouco colou o corpo na janela lateral, mas sua perna parou num arco de violetas.
— Também não passa — rosnou. — É como bater contra um muro de tijolos invisíveis. Só que só tem violetas ali. Violetas, céus!
— Feitiço de proteção — sussurrou o General. — Malditas!
— A bruxa!
— O cozinheiro!
— O sovaco!
A bruma remexeu-se e deslizou pela viela, rondando até a porta dos fundos — a entrada da cozinha.
Dentro, Ferreira de Tarso preparava a refeição mais importante de sua carreira acidental. As Avós Celestinas, lendas esquecidas do vilarejo, ocupavam a taberna desde o romper da manhã, bebendo infusões ardentes e exigindo iguarias ancestrais.
— Elas aprovaram o pão preto, Moça Mariana? — perguntou Ferreira, virando o molho de ervas.
— Amaram. Disseram que é receita digna de avó para avó.
— Mas os mantimentos… que demora!
Bateram à porta.
Moça Mariana destrancou-a e três senhores calvos, carregando caixas de iguarias, entraram. Mal os entregadores deram dois passos, um dos Touros tentou possuir seus corpos, mas logo se deu conta:
— Ué… Acho que não consigo!
— Nem eu! — rosnou outro. — É como tentar calçar uma meia úmida. Eles não são convidados, esses daí.
— Então que tal dizermos que estamos com fome? — sugeriu um espectro esperançoso.
— Vamos fazer melhor — retrucou o General. — Mauá, Mauá, Mauá, Mauá…
Enquanto isso, Ferreira despejava macarrão na água fervente, ignorando o estranho ruído vindo de um dos caixotes. Rataria, pensou ele. Chutou a caixa sem hesitar, agarrando um feixe de macarrão.
— Maravilha na panela. Maravilha de refeição. Meu ganha-pão, macarrão, macarrão!
As Avós Celestinas brindaram com água feroz recolhida em potes de mel. Os aromas de anis e alho-fantasma encheram o ambiente.
— Coma conosco, garota. Hoje teu mestre cuca permite. Afinal, a féria vem de nós — disse Senhorinha Mariluce.
Ferreira de Tarso irrompeu da cozinha, trazendo um tacho fumegante de macarrão.
— Boa fartura a todas!
As avós, que andavam vagarosas, empunhavam garfos com destreza de serpente. Os fios de massa sumiam rápido nos bicos miúdos. Moça Mariana já levava um garfo à boca quando ouviu:
— Prove e me elogie, mulher! — pediu Ferreira, peito cheio.
— Provaria, mas… o que são essas porcarias penduradas no macarrão?
O cozinheiro se aproximou, franzindo o cenho. Pendurados entre os fios brilhantes estavam formas diminutas, tal qual pedaços de giz branco.
— Mas que… — sussurrou ele.
As Avós largaram os garfos, Mariana recuou.
— Preste atenção nos fios! — advertiu a mais velha.
Ali estavam eles: os Touros e o General Olavo Mariano, diminutos, escalando os fios de massa como quem sobe a corda de um poço. Uma bruma fina os acompanhava como vapor de vinho barato.
— Mas que tipo de fantasma é esse que se mete na comida alheia? — perguntou Ferreira.
— É o General que eu matei! — confessou Mariana, corando de leve. — E os soldados. Mas era só um feitiço simples! Um lacre de passagem! Elas disseram que ninguém notaria!
— Moça Mariana Queteparta! Era selado que nenhuma magia faria fora de nossa morada! — advertiu uma das Avós.
Sem ter como escapar, Mariana contou a história. Ferreira remexia a massa com um garfão, fascinado.
— É incrível… Ao mesmo tempo que parece apetitoso, é repulsivo. Talvez… exótico. Qual o gosto de um bom fantasma?
Ninguém sabia.
— Pois esta é a receita que todo cozinheiro sonha. — disse Ferreira, olhos cintilando.
— O quê todo cozinheiro sonha? — perguntou Mariana.
— Um novo sabor.
— Tão caprichoso.
— Até parecem gostosos.
— Lembra algodão doce. : )
— Podem engordar!
— Podem matar! _ _
— Estão tão coladinhos… — murmurou uma das Avós.
— …aos fios de macarrão! — completaram em coro.
Naquela manhã, os fantasmas tiveram um gosto peculiar. Um gosto de não sei o quê. Olavo Mariano e os Touros foram devorados, fibra a fibra, entre garfadas apressadas e goles de água feroz.
E no umbral, o pensamento recorrente de cada um deles era:
O umbral é um lugar estranho quando se está dentro de um estômago.
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